Para quem não suporta falsificações da História, estes dias têm exigido doses homéricas de paciência. Mas nem um monge cartuxo aturaria em silêncio tudo o que foi escrito e dito esta semana sobre o primeiro 1.º de Maio da democracia. Aqueles que ouviram, obedientemente, as missas que tomaram conta do país foram catequizados com uma versão dos acontecimentos segundo a qual, em 1974, o país se uniu numa festa a favor da liberdade e da democracia. Segundo parece, apenas seis dias depois do 25 de Abril, correram rios de mel, os pássaros juntaram-se para cantar hosanas e o sol, metaforicamente ou não, bailou. O maior símbolo desse milagre terreno teria sido o “abraço” entre Álvaro Cunhal e Mário Soares no comício realizado no chamado estádio do INATEL. Essa seria a prova evidente de que houve um momento dourado na nossa História em que todos os conflitos foram esquecidos para que, como dizia alguém, a harmonia substituísse o conflito, a verdade substituísse o erro e a fé substituísse a dúvida.

É uma história bonita e comovente. E também falsa. No 1.º de Maio de 1974, os líderes partidários não andavam de mãos dadas, irmanados com o povo numa celebração única de uma bela revolução. Não precisam de acreditar nas minhas palavras — basta acreditarem nas palavras de Mário Soares. Felizmente, o fundador do PS quis deixar tudo escrito e explicado sobre aqueles dias, para que não houvesse confusões ou ambiguidades.

Anos mais tarde, Soares lembraria a Maria João Avillez que o comício daquele primeiro 1.º de Maio, onde esteve com Álvaro Cunhal, o “desagradou profundamente”. O problema inicial foi com a coreografia. Ao chegar ao palco, o líder do PS foi informado da ordem dos discursos e percebeu que “seria o penúltimo a falar e Cunhal encerraria o comício”. Desconfiado, perguntou aos elementos da CGTP encarregues da organização qual o motivo para aquela decisão que favorecia o líder comunista. A resposta foi sonsa e descarada ao mesmo tempo: a deferência para com o secretário-geral do PCP justificava-se pelo facto de Cunhal “ser o mais velho”. O segundo problema de Soares foi com uma artimanha. Ao discursar, “sem ler e com emoção”, o socialista “empolgou” os manifestantes. Perante aquela reação, os sindicalistas do PCP puseram a tocar o hino nacional, “para cortar os aplausos”. O terceiro problema foi com o discurso de Cunhal. O líder comunista falou colocando-se “entre um marinheiro e um soldado”, “com ressonâncias subliminares de Petrogrado em 1917”. Eram vários sinais ao mesmo tempo. Depois de tudo aquilo, Mário Soares percebeu que precisaria de ficar alerta: “As coisas começaram a parecer-me menos claras do que julgara”.

Na realidade, “as coisas” eram já claríssimas. Nestes 50 anos do 25 de Abril, só o comunista Domingos Abrantes falou com sinceridade sobre aquele dia. Esta semana, ao Diário de Notícias, explicou que o 1.º de Maio de 1974 foi “o momento em que as massas populares entraram em ação como atores da revolução” e que “foi a partir da ação gigantesca das massas populares que se iniciou o processo revolucionário, que depois vai impor enormes transformações”.

Além de Mário Soares, houve outras pessoas a perceberem tudo. Em Coimbra, o social-democrata Barbosa de Melo participou no cortejo do Dia do Trabalhador na Baixa de Coimbra e ficou preocupado ao ver apenas bandeiras do PCP. Não conseguiu dormir e de manhã cedo disse à mulher que deviam fugir enquanto era tempo: “Recuso-me a viver num regime comunista. Sei o que acontece depois de eles tomarem o poder: já não sai ninguém”.

Depois de pensar melhor, Barbosa de Melo não fugiu — ficou no PSD. E, depois do que viu no estádio do INATEL, Mário Soares não se amedrontou — enfrentou Cunhal. Para ambos, tornara-se evidente que, no 1.º de Maio de 1974, o PCP já estava a preparar a tomada do poder. E, para usar uma frase que surgiria bem mais tarde, decidiram que não precisavam de uma boleia, precisavam de munições políticas para impedir o golpe dentro do golpe. Mas, nestes 50 anos do 25 de Abril, nada disso interessou: foi impossível resistir à tentação de usar fantasias para, primeiro, mitificar o passado e, depois, utilizar esse passado, devidamente recauchutado, nas lutas políticas do nosso dia a dia. Digam o que disserem, isso não é História — são histórias da Carochinha.

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