Há cerca de três anos, o activista Mamadou Ba disse que era preciso matar o homem branco. Tratou-se, tudo o indica, de uma metáfora. Mamadou Ba não queria matar ninguém, apenas reduzir, contestar ou anular o papel do homem branco na sociedade e o peso da sua história nos nossos livros de História. De uma forma muito menos metafórica, no passado mês de Julho, no maior estádio de Joanesburgo, cheio como um ovo, e num enorme comício de comemoração do 10º aniversário do EFF (Economic Freedom Fighters), um partido de extrema-esquerda por si fundado em 2013, Julius Malema cantou uma canção dos tempos do Apartheid que encoraja a população negra a que dispare a matar sobre os fazendeiros brancos: “Shoot to kill. Kill the boer, the farmer. Kill the boer, the farmer”. Vejam o vídeo porque ele dura poucos segundos e fala por si.
Houve queixas de associações de gente branca, como já tinha havido no passado, mas apesar de, nos últimos tempos, dezenas de lavradores brancos terem sido atacados e mortos com requintes de sadismo, o juiz Edwin Molahlehi decidiu que a canção não constitui discurso de ódio. Fortalecido por esse acórdão e pelas suas manifestas filantropia e boa índole, Julius Malema afirmou, como se pode ver e ouvir nesta entrevista da Sky News, que não irá deixar de cantar a doce canção que apela à morte dos fazendeiros brancos, ou dos brancos em geral (na África do Sul, a palavra de origem holandesa boer — lavrador, camponês, rústico — também pode ter esse significado mais lato), apelo que, segundo disse, é “por enquanto” (sic) uma figura de retórica.
Não tenho conhecimentos aprofundados sobre o que se passa na África do Sul para analisar com um mínimo de substância a carga política e ideológica deste apelo sanguinário. Fui seguindo o assunto na imprensa internacional, tanto na de esquerda como na de direita, e pouco mais posso fazer do que remeter os leitores interessados para aí. Em contrapartida, sei o suficiente da extrema-esquerda nacional, e dos seus duplos critérios de análise e avaliação das coisas, para interpretar e criticar o seu sepulcral silêncio perante estes factos. Efectivamente, não houve, que eu saiba, uma só voz do Bloco de Esquerda, do Livre, do Partido Comunista e das zonas intersticiais desse campo político e partidário, vozes sempre tão preocupadas com o discurso do ódio, que tenha vindo comentar os apelos do líder sul-africano.
Daniel Oliveira não se indigna? Cristina Roldão também não? Fernanda Câncio não tem nada a dizer sobre isto? O jornal Público não arrisca uma linha sobre o assunto? Os arautos e as caixas de ressonância nacionais do movimento Black Lives Matter emudeceram? Reparem que em muitos casos estamos a falar de pessoas que estão tão alerta e são tão sensíveis ao peso das palavras que, na esteira de Dino D’Santiago — o primeiro dos contestatários —, se revoltaram e revoltam com a letra do nosso hino nacional por ela louvar os “heróis do mar” e ser supostamente agressiva. Tomemos um exemplo. Carmo Afonso, uma das pessoas em causa, declarou a esse respeito: “a letra do nosso hino incita à guerra e à atitude bélica. Não vejo que nos represente e também não vejo que contenha os valores fundamentais que valorizamos e que queremos passar às novas gerações (…) Li as críticas que fizeram ao Dino (D’Santiago) e à sua argumentação e o que tenho a dizer é: contra elas marchar, marchar!”
Ora Carmo Afonso, sempre tão atenta às injustiças e violências de natureza racial e tendo à sua disposição uma excelente e ampla tribuna, pois escreve três vezes por semana no jornal Público, não reparou no que se passa na África do Sul ou, se reparou, não considerou que houvesse matéria para se debruçar sobre a questão. E como ela, todos os outros opinadores da sua área política. Poderia pensar-se que este esquecimento ocorre porque a articulista & friends se debruçam exclusivamente sobre acontecimentos nacionais, mas não é isso que acontece. Carmo Afonso e muitas outras vozes de esquerda também se interessam e indignam por violências ou apelos à violência racial em países estrangeiros.
O problema é que só o fazem num determinado sentido. Se for para condenar as direitas políticas ou o homem branco e ocidental, tanto em particular como em geral, têm sempre a faca pronta e afiada. Se for para censurar as esquerdas políticas ou determinados comportamentos de gente de outras etnias ou habitantes/provenientes de outras partes do globo, tapam os olhos, os ouvidos e a boca e remetem-se a uma paralisia e a um silêncio nada inocentes. Porquê? Existem, claro está, várias razões para esta chocante dualidade de critérios, mas há uma que aqui me interessa particularmente. É que em Portugal e no resto do Ocidente a esquerda — e também alguma direita, reconheça-se — interiorizou a culpa do homem branco, uma interiorização que responsabiliza os ocidentais de pele clara por tudo o que de mau aconteceu e acontece no mundo, e que implica a correspondente desresponsabilização e desculpabilização dos não-brancos e não-ocidentais. A interiorização de que falo está muito presente nos dias de hoje, mas não é de agora. Tem uma história e uma tradição filosófica e jacobina que nos faz recuar até ao século XVIII, uma viagem ao passado que exige alguns detalhes, implica alguma demora, e que deixarei, por isso, para o próximo artigo.