Em política revisitar o passado não é hábito nacional, para além de culpabilização política. Como alguém escreveu o passado é outro País, mas talvez possa ser útil para percebermos a problemática da saúde. Recuemos às raízes do problema. O sistema de saúde a partir dos anos 60 e 70 do século passado sofreu grandes modificações e tinha lacunas evidentes reconhecidas por vários sectores de opinião incluindo os médicos. Por isso, impunha-se mudar.

Naturalmente, a estrutura existente foi, simultaneamente, alicerce e constrangimento para o futuro. Como agora, havia um sector público e social e outro privado. O sector público incluía a Medicina Ambulatória dependente dos postos clínicos das Caixas de Previdência e das Casas do Povo para a população rural, a Medicina Preventiva dependia de rede de delegados de Saúde – médicos dedicados à Saúde Pública com uma carreira específica, independente e em exclusividade. A que se somavam serviços próprios e com autonomia para doenças de grande impacto social como o IANT, decisivo na redução da tuberculose (a peste branca), os serviços para a luta antissezonática que permitiram a nível nacional, especialmente no Sul do País, vencer a malária – as sezões como era designado o síndroma febril típico.

Após a reforma de Gonçalves Ferreira no governo de Marcello Caetano estes serviços foram integrados constituindo os Centros de Saúde. O sector privado dependia da acumulação de serviço dos recursos humanos, médicos e também de enfermagem. Os médicos exclusivamente na actividade privada eram raros fora das grandes cidades, mas existiam e tiveram grande impacto, regional e nacional. Existia sistema hospitalar, hierarquizado – hospitais municipais, distritais e gerais – que incluía as Misericórdias, uma rede institucional com dimensão nacional. O sector privado era complexo: incluía doentes privados que pagavam do seu bolso – out-of-pocket como é designação actual – outros, que eram beneficiários do sistema convencionado dependente quer de grandes empresas, públicas e privadas, como de serviços de Ministérios como a Justiça, Educação, GNR, Forças Armadas e Polícia, etc uma lista extensa. E a partir de 1963 com a criação da ADSE, os funcionários do Estado e dependentes. Como nos tempos actuais.

O sistema hospitalar privado dessa época baseava-se em clínicas (Casas de Saúde), a maioria de reduzida dimensão e diferenciação, algumas com acordo com a Previdência social pública para internamentos e cirurgias menos complexas. Outras tinham verdadeira estrutura hospitalar e permitiam tratamentos cirúrgicos muito diferenciados. As situações mais complexas eram tratadas preferencialmente nos hospitais públicos – com excepções bem conhecidas. Verdadeiramente o sistema de Saúde pré-SNS era uma adaptação bismarkiana sem o seguro público social próprio desses sistemas, como na Alemanha, Bélgica, Suíça, França, etc. que garantia a protecção universal assegurada pelo Estado. Alguns hospitais públicos tiveram sector de quartos privados, para utilização privilegiada dos Chefes e Directores de Serviço. Em Santa Maria teve reduzida expressão, e não recordo que algum dos Directores com quem trabalhei tivesse doentes privados internados. Uma situação semelhante à britânica terminada pelo governo trabalhista no início dos anos 70.

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Os legisladores que introduziram o SNS ambicionaram criar um Sistema de Saúde global, universal, tendencialmente gratuito no momento de Necessidade e sustentado pelos impostos globais pagos pelos cidadãos e empresas, sem nenhuma quota específica para a Saúde. Mantiveram, além do sector exclusivamente privado, o sistema convencionado, ADSE incluída, cujo âmbito de acção foi sendo expandido, e mesmo os serviços dependentes de empresas que foram nacionalizadas no período revolucionário e até à data da fundação do SNS. Tornaram constitucional o direito à saúde, conferiram dimensão e unidade ao sector público. Não modificaram, nem introduziram outros constrangimentos ao sector privado, excepto limitar e controlar abusos notórios no sistema convencionado.

De facto, nem se criou um SNS global e unificado incorporando convenções e ADSE, nem se expandiu o sistema de Saúde financiando a sua universalidade através de seguro social obrigatório e público com prémio pago pelo contribuinte ou pelo Estado para os isentos. O que se criou foi um sistema híbrido, que ora era privado para a população com recursos, ou com acesso à medicina convencionada, ADSE e seguros de Saúde; ora era público, porque sendo o SNS universal o acesso era para todos os cidadãos, mesmo os que tivessem outro subsistema de Saúde. Não se cruzou o Rubicão, isto é, ficou-se a meio da ponte! E, curiosamente, quando o sistema britânico NHS, modelo e inspiração, já evidenciava nos anos 70 graves disfunções.

Quais as razões? Indecisão ideológica e política, receio de afrontar interesses estabelecidos, nomeadamente dos cidadãos beneficiários do sector convencionado, reformismo mitigado? Alternância governativa suscitando dúvidas sobre o Sistema de Saúde? Pressão de corporativismos profissionais? A Ordem dos Médicos (OM) defendia livre escolha do doente, o que veio a ser reconhecido no SNS em 2016 e alertava para os riscos da integração dos quadros profissionais na Função Pública que poderia comprometer carreiras e meritocracia. Nisso, a OM foi premonitória! Mas, talvez tenha havido outra razão essencial, idiossincrática: a nossa dificuldade em optar e fazer escolhas claras. Como alguém me sugeriu passeando nos verdes parques londrinos os portugueses desejam as vantagens duma Política e da outra diametralmente oposta!

Citei em artigo anterior a Hemodiálise, a Medicina Laboratorial e a Imagiologia mais sofisticada na qual o sector privado foi essencial na sua introdução e disponibilização universal através de convenção com o Estado/SNS, sem que a Administração Pública da Saúde se tivesse preparado, antecipado e organizado a resposta no sector público. São pois antigas e sólidas as ligações dos sectores público e privado neste Sistema de Saúde híbrido em Portugal. Haverá outras, como a permeabilidade público/privada de alguns sectores profissionais? Mas não foram só os médicos… Por isso, a deriva ideológica que marcou a segunda metade do governo socialista conhecido pela geringonça foi realmente um exercício contra a realidade, de desconhecimento deliberado da História e dos factos, uma tentativa de impor um murmúrio de um vento serôdio e tardio, condenado historicamente.

A partir da 2.ª metade da 1.ª década do século XXI houve uma mudança estrutural significativa, com emergência dum sector privado na Saúde, moderno, estruturado e dinâmico que, de supletivo, passou a competitivo com o SNS, apoiado no crescimento dum sector de seguros de Saúde privado que foi absorvendo o sistema convencionado excepto a ADSE. Aconteceu com apoio e beneplácito de sucessivos governos de matriz ideológica diversa. E sem a reestruturação que se impunha fazer no SNS para responder ao desafio! Os neerlandeses talvez tenham sido mais sábios, criaram um verdadeiro sistema misto, com competição nos sistemas de seguro público e privado, forte regulação central sobre as instituições públicas e privadas, sobre os seguros e com direito de escolha pelos cidadãos que podiam complementar com seguros privados e/ou municipais para áreas não cobertas pelo seguro público.

45 anos depois, onde estamos? Não defendo que a situação seja apocalíptica e quero acreditar que serão possíveis as mudanças necessárias. Segundo relatórios europeus publicados em 2019 e 2023 houve grandes desenvolvimentos em Portugal: redução extraordinária da mortalidade neonatal, materna e infantil, incremento da esperança de vida ultrapassando a média europeia, redução da mortalidade evitável pela intervenção clínica nomeadamente na área cardiovascular, neurológica e oncológica, concretização de programas de rastreio de doenças oncológicas, diabetes e outras, incorporação da inovação terapêutica médica e cirúrgica e melhoria dos resultados terapêuticos. Certamente consequência de um bom serviço público, mas também da melhoria das condições socioeconómicas da população, da Educação especializada de muitos fora do País com apoio privado de Fundações e também do Estado, isto é, da Qualificação profissional do sector. Persistem lacunas e pretender que tudo está bem, só por preconceito ideológico, é tão nocivo como a inércia de nada fazer. Na Saúde Oral, na Saúde Mental, na distribuição assimétrica de recursos em Saúde entre o litoral e o interior do País, na carência de profissionais de Saúde, na deficiente resposta do sector dos Cuidados Primários perante a procura e a sua deficiente articulação com o sector hospitalar. Uma das consequências é, também, a pletora das urgências. E um custo global não despiciendo – 15 mil milhões de euros foi o Orçamento do Estado para a Saúde (SNS). De facto, os dados objectivos são inequívocos: somos dos europeus que têm maior contribuição privada (out-of-pocket) para a Saúde: 29% perante 15% na média europeia (fig.1), cerca do dobro em pagamentos directos voluntários, não públicos (seguros de saúde e mutualidades – 8% vs 4% na média europeia, maior contribuição directa 

nos internamentos (10% vs 6%) e nos cuidados ambulatórios (50% vs 20%). Despesa comparável na compra de medicamentos e menor 7% vs 24%, nos Cuidados Continuados, talvez pela menor disponibilidade destes serviços em Portugal apesar do nosso inverno demográfico. E a contribuição pública do Estado em comparação com a média europeia em todos os sectores, medicina ambulatória, hospitalar, medicamentos e materiais terapêuticos é menor em Portugal (fig.2). E na Prevenção Portugal tem das mais baixas contribuições públicas na União Europeia.

Em resumo: apesar do serviço público universal a comparticipação pública per capita em Saúde, isto é, do Estado, é bem menor em Portugal – 63,2% – que os 81,1% na média europeia, mas a despesa individual privada em Portugal maior que a média europeia: € 968 em Portugal versus € 710 na União (Fig.3)

Poupança do Estado (?) – fazemos igual com menos! – contrabalançada pela despesa privada dos cidadãos, uma contradição essencial com os objectivos fundacionais do SNS e factor potencial de agravamento de desigualdade na utilização de serviços de Saúde. Onde residirá essa poupança do sector público, quase 50% da despesa média europeia? Na gestão mais eficiente dos recursos? Na incorporação tecnológica e modernização do sector público? Ou … nos menores salários dos profissionais de Saúde, médicos, enfermeiros, tecnologistas, quantas vezes obrigados ao duplo emprego e acumulação de actividade pública e privada? Explicação possível para a emigração destes quadros?

E onde residem os constrangimentos e maiores dificuldades?

Dados recentes publicados no Portal da Saúde sugerem deficiente resposta dos Cuidados Primários de Saúde (CPS): 1,72 milhões de utentes sem médico de família, menos consultas presenciais realizadas e variação insignificante nas primeiras consultas hospitalares, atribuída a menor referenciação dos Centros de Saúde.

E impõe-se uma pergunta: será que uma parte relevante destes 1,7 milhões não terá médico de família privado, pago pelos seguros, convenções ou out-of-pocket? Não será possível clarificar essa realidade e incorporá-la na apreciação global e promover articulação com os CPS?

E duas outras questões me parecem pertinentes: ainda persistem as listas fixas de utentes por médico de família que dificultam resposta aos novos doentes? E como podemos assistir indiferentes às filas de espera à chuva e de madrugada para marcar uma consulta no SNS? Na época da automatização e da inteligência artificial? Como é que em novos Centros de Saúde abertos recentemente, como na minha área de residência, já não existam vagas para novos doentes?

E apenas uma nota sobre a carência em recursos humanos: Portugal tem o 3.º maior número de médicos no contexto europeu, e na ausência de informação rigorosa sobre o número de médicos activos no sector público e privado, há uma realidade que se constata: os médicos tendem a continuar a trabalhar após a reforma oficial, pelo que se estima que Portugal continuará a ter um número activo de médicos por 1 000 habitantes só ultrapassado pela Áustria, Letónia, Noruega, Grécia e provavelmente a Bélgica. Mas temos menor número de enfermeiros activos por 1 000 habitantes, o que verdadeiramente evidencia a necessidade de mais destes profissionais e não são contabilizadas carências de outros profissionais como fisioterapeutas, indispensáveis à reabilitação, psicólogos, nutricionistas, higienistas orais na Medicina Dentária e pessoal para secretariado clínico. E em Saúde Mental, onde as dificuldades serão ainda mais prementes.

Por isso, questiono o rigor da decisão de criar mais duas escolas médicas públicas que, para exercerem a sua missão, exigirão importantes recursos financeiros e humanos para o ensino. Como justificação invoca-se o inverno demográfico, quando sabemos que podemos usar teleconsultas, monitorização à distância e devemos privilegiar hospitalização domiciliária, e isso, precisa-se mais de enfermagem bem treinada e enquadrada, o que racionaliza o trabalho médico! Ou pretende-se ainda desvalorizar mais o trabalho médico? Houve quem propusesse voltarmos aos médicos indiferenciados para a Medicina ambulatória!

Que fazer então? O SNS precisa de mudanças e de adaptação a uma nova realidade. É, sem dúvida, a prioridade. O tempo de discussão sobre vantagens e desvantagens dos sistemas de Saúde é Passado; o que se pretende é potenciar os recursos existentes. Por isso não devem ser ignorados com sobranceria, nem subalternizados como aconteceu na Pandemia, como se fossem outro país. Há uma lição do Passado: nem as forças políticas, nem os cidadãos quiseram opções exclusivas sobre o seu Sistema de Saúde, optaram pelas vantagens possíveis dos diferentes sectores minimizando os aspectos negativos. Por isso, temo que propostas de reforma radical tipo bala de prata que tudo resolverá, não funcionarão.  A reorganização do SNS transformado numa acumulação de Unidades Locais de Saúde, centralizadora, fortemente hospitalocêntrica, sob modelo unificador perante diversidade local e regional, de culturas institucionais e de necessidades, sem uma discussão alargada e mobilização activa de todos os parceiros potenciais, suscita-me grande preocupação. Foi claramente um epifenómeno político de uma maioria absoluta que se dissolveu inesperadamente. Precisamos de mais Cuidados Continuados para uma população envelhecida? Mas consegue-se colocando esse sector sob a égide centralizadora do Hospital ou, pelo contrário, potenciando recursos às iniciativas que existem, públicas, sociais e privadas, conferindo-lhes autonomia, responsabilidade e contratualização quando indispensável perante negociação séria e exigente? E para a articulação entre Centros de Saúde e Hospitais será mais eficaz centralizar a administração, ou promover iniciativas comuns de cooperação, como as Iniciativas Clínicas Integradas dirigidas às áreas de maior necessidade clínica trazendo a Medicina Familiar ao Hospital e este à Comunidade através dos Centros de Saúde? E os concursos para os médicos? Serão mais eficazes os múltiplos concursos institucionais com dificuldades burocráticas ou um concurso nacional único para o SNS uma vez que os Internatos terminam em todo o país na mesma época? E reservar os concursos institucionais para as situações excepcionais?

Sempre acreditei que é preferível definir um caminho que se fará caminhando, resolvendo com decisão os problemas, com uma estratégia balizada por pilares fundamentais aceites pelos diferentes protagonistas e parceiros, preservando características institucionais, autonomia e cooperação. E os Centros Académicos de Medicina com dimensão nacional e internacional integrados em Unidades Locais ou Regionais como mais um componente, não me parece a melhor solução. A ambição tem que ser outra!

Sobre as Urgências hospitalares já muito se escreveu. Ignorou-se por voluntarismo político e ideológico a experiência dos anos 80 e 90 dos SAP’s (Serviços de Atendimento Permanente) 3 ou 4 distribuídos na área de Lisboa com equipas médicas incluindo especialistas hospitalares.  Se tivessem sido capacitados com os meios tecnológicos de diagnóstico basilar, quanto incómodo não teria sido evitado…Concentração e racionalização de Urgências é prioridade antiga, tivemos experiências nacionais e há realidades internacionais que poderão servir de modelo. E é indispensável a colaboração e articulação da emergência pré-hospitalar.

E soluções pontuais, que estimulem a dedicação e o trabalho no SNS mediante compensação financeira adequada com racionalização necessária das equipas clínicas e talvez redução da necessidade de trabalho à tarefa. Estimularia maior fixação dos profissionais no SNS com perspectivas de carreira como se ambicionou no célebre Relatório das Carreiras Médicas da década de 60 e, certamente, rentabilizando os recursos financeiros. E que as Instituições se organizem e desenvolvam numa perspectiva integrada e de cooperação sem o espartilho de uma organização rígida, seja local ou regional. Afinal somos um país pequeno e com pouco mais de 10 milhões de habitantes! Preocupa-me a expansão do sector privado, criando unidades hospitalares em áreas de menor população claramente apostando em competição com iniciativas públicas do SNS. Não seria possível um pacto de convergência e cooperação? A consequência parece óbvia: mais disputa de recursos humanos especializados, acrimónia e disfunções!

Escrever é fácil, decidir é complexo e concretizar deve ser uma tortura! Creio que a máxima do nosso ethos cirúrgico que vem do nosso patrono académico do século XV Ambroise Paré acreditar no que se vê, mais que ver o que se acredita se impõe também a quem tem o fardo enorme da decisão política.