Aparentemente, haverá vitória republicana na Câmara dos Representantes. No Senado, ainda não se sabe. Pode continuar tudo na mesma, com republicanos e democratas empatados e Kamala Harris a desempatar a favor dos democratas. Não procurei seguir a lista enorme de outras coisas em que os americanos votaram nestas eleições. Mas sei que muitos republicanos estão frustrados por a anunciada “onda vermelha” não se ter verificado. E, naturalmente, o sentimento dominante entre os democratas é o de alívio. Ouvi mesmo um deles, na CNN americana, declarar que o sentimento mais poderoso não é a felicidade: é o alívio. Por acaso, tendo, em geral, a concordar.

De qualquer maneira, pesava sobre estas eleições o fantasma do mais célebre morto-vivo da história recente, Donald Trump, e não parece que a sua presença tenha sido particularmente favorável aos republicanos, que têm agora uma nova estrela, Ron DeSantis. E, convenhamos, depois da farsa grotesca – é, creio, a expressão que convém – do ataque ao Capitólio, numa versão peplum das lutas entre populares e optimates no fim da República Romana, dificilmente se poderia passar de modo diferente. Com efeito, não tenho memória de um tão gigantesco suicídio político, feito quase a pedido dos democratas. O historiador e classicista Victor Davis Hanson escreveu há uns anos um livro (The Case for Trump) onde analisava aquilo que, até 2018, fora bom – e houve coisas boas – e mau na presidência de Trump. Acabava, interessantemente, recorrendo à figura do western. E imaginava que Trump poderia acabar como aqueles heróis que, depois de terem feito o necessário para pôr ordem na terrinha, são despachados para outro lado qualquer. O que ele não imaginava (nem eu) é que a coisa se pudesse passar como se passou. Como se, no final do filme, John Wayne começasse a disparar em todas as direcções. Ou, na obra-prima de Ford, O homem que matou Liberty Valance, tivesse assassinado Jimmy Stewart.

À sua maneira, isto mostra até que ponto a democracia é artificial, no sentido de ser uma construção humana que vai contra muitos dos nossos instintos mais primitivos. Reconhecer uma derrota é tudo menos natural, sobretudo em eleições, como as americanas, que exigem dos concorrentes um investimento psíquico tão formidável que nos é difícil imaginá-lo. A quantidade de mecanismos mentais mobilizados para perseverar na campanha não se conta. As doses de auto-ilusão consumidas no processo são praticamente infinitas. O choque bruto da derrota – o confronto com um Não-Eu que limita decisivamente o Eu, para falar filosoficamente – é tudo menos facilmente assimilável. Já o é para políticos que se formaram e cresceram no interior dos partidos, onde, apesar de tudo, adquiriram, de múltiplas maneiras, a experiência de conviver com derrotas dentro desses mesmos partidos (lembrem-se de Hillary Clinton). Agora imaginem como o será para alguém – é, claramente, o caso de Trump – que, pura e simplesmente, tomou conta de um partido a partir do exterior. A dificuldade em aceitar uma derrota pode atingir proporções cósmicas: ela é, literalmente, inconcebível. O fortíssimo investimento psíquico não admite tão colossal decepção.

A filosofia, desde há muito, estabeleceu uma analogia entre, por um lado, afirmação e negação, e, por outro, perseguição e fuga. Encontramo-la em autores tão diversos como Aristóteles e Descartes. E Hobbes associava a negação a uma “vontade de omitir”. No caso das eleições, os vencedores – aqueles que se afirmam – figuram os predadores e os derrotados – aqueles que negam – a presa. É a negação que é verdadeiramente interessante. Porque ela pode dar-se de, pelo menos, duas maneiras. Como pura e simples fuga, e isso corresponde, eleitoralmente, à admissão da derrota. Mas a negação pode ser mais radical.

Foi essa concepção radical da negação que Sartre desenvolveu numa sua obra de juventude, o Esboço de uma teoria das emoções. O exemplo que ele dá é o do desmaio por medo. Ignoro se a teoria de Sartre é verdadeira, mas é tão boa que merecia sê-lo. O que faz, ao fim e ao cabo, quem assim desmaia? Nega a existência do objecto que o ameaça. O objecto, como por milagre, desaparece da consciência, e, de um certo modo, deixa de existir. Imaginem que estão na vossa sala a ver televisão e, de repente, vos entra por ela dentro um tigre siberiano. Admito que haja pessoas de valor extraordinário que, qual Tarzan, avancem para o animal para um heróico combate corpo-a-corpo. Por mim, e sem ter qualquer prazer em me diminuir através desta confissão, o mais possível era que desmaiasse. Seria muito mais fácil: o tigre deixaria de existir na minha consciência, que o negaria por inteiro. É claro que ele me esfacelaria à mesma, mas a minha consciência estaria, por assim dizer, segura.

É um tipo de segurança que não convém à política. Em política, a negação radical não é bem-vinda. A fuga pura e simples – a admissão da derrota, por mais insuportável que seja – deve ser a regra. Mas foi o desmaio que Trump escolheu, para sua desgraça, quando perdeu as eleições para Biden. E, aparentemente, continua desmaiado, em intensa actividade onírica. Segundo todas as aparências, Ron DeSantis não se inclina para a negação radical. Tanto melhor para ele e para os republicanos. É mais normal.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR