Em 2006, dia 27 de Abril, a CGD aprovava o primeiro empréstimo a Joe Berardo, sem garantias. Dia 3 de Abril tinha sido assinado o acordo entre o Estado português, representado pelo primeiro-ministro José Sócrates e a ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, com Joe Berardo, para que a sua colecção pudesse ir para o CCB. O Museu Berardo abrirá as suas portas em Junho de 2006. Hoje sabe-se que foi nesse ano que Joe Berardo iniciou as suas compras de acções do BCP que fizeram dele, em 2007 e com dinheiro da CGD, do BES e do próprio BCP, o terceiro maior acionista do banco fundado por Jorge Jardim Gonçalves. Hoje, os três bancos reclamam mais de mil milhões de euros e a Joe Berardo.

Quem decidiu esses créditos e porquê? Como foi possível não existir nenhuma avaliação da colecção Joe Berardo, por uma entidade independente, depois de 2006? Como é que os  bancos aceitaram o penhor dos títulos da Associação Colecção Berardo, primeiro em finais de 2008 e depois em Maio de 2011 sem reavaliarem de forma independente a colecção de arte? Porque resistiram a essa reavaliação quando ela é insistentemente pedida pelos relatórios internos sobre imparidades, feitos pela Deloitte, e pelo próprio Governo que a quer fazer em 2011?

A cronologia que neste momento já é possível fazer sobre o caso Berardo (ver em baixo) fornece-nos algumas respostas, mas não todas. Ficam pistas, possibilidades de conluios e cumplicidades entre o poder político e financeiro da altura. Hoje Berardo corre o risco de se tornar no “culpado” das perdas dos bancos, com especial relevo para a CGD. Porque ninguém quer ver o que se passou, porque é preciso continuar a proteger alguns dos que decidiram esses créditos, porque é preciso não perceber bem porque era tão importante controlar (também) o BCP, que na altura ameaçava a hegemonia de Ricardo Salgado e do BES.

Os mais relevantes créditos a Berardo (quase 400 milhões de euros) foram decididos pela administração liderada por Carlos Santos Ferreira, onde estavam Armando Vara e Francisco Bandeira. O objectivo do financiamento era comprar acções do BCP. A informação que temos, neste momento, é que esses financiamentos foram concedidos sem outra garantia que não fossem as acções das empresas cotadas, com especial relevo para as do BCP.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando a crise financeira se agrava em 2008 – já Carlos Santos Ferreira estava no BCP – as acções começam a afundar-se. De 2007 para 2008, o valor do BCP caiu 63%, valia mais de 10 mil milhões de euros e passou a valer 3,8 mil milhões de euros. Obviamente que as acções dadas como garantia já não cobriam a totalidade do empréstimo. No relatório sobre imparidades, a Deloitte alerta logo em 2008 para o facto de “os rácios mínimos de cobertura” dos empréstimos pelo valor das acções não estarem a ser cumpridos, identificando Manuel Fino, Joe Berardo e a Imatosgil.

A primeira reestruturação que a CGD faz da dívida de Berardo acontece em finais de 2008. Mas o problema não fica resolvido, a crer nos alertas da Deloitte que, sobre as contas de 2009, diz que, apesar de ter negociado o reforço de garantias, há casos, como o de Berardo e Fino, em que as responsabilidades não ficaram totalmente cobertas. Parecer ignorado sem que a Deloitte considerasse importante referir esse problema nas reservas públicas às contas.

Quando se pronuncia sobre as contas de 2010, a Deloitte recomenda que se faça uma nova avaliação à colecção de arte Berardo que está, desde finais de 2008, a servir para reforçar as garantias dos empréstimos a Joe Berardo sob a forma de títulos da Associação. Nesta altura, finais de 2010, já Berardo tinha entrado no seu segundo incumprimento no pagamento de juros.

De repente, nas contas de 2011, a CGD valida uma avaliação de 2009 realizada pelo próprio devedor, o que é aceite pela Deloitte, ainda que o auditor insista na realização de nova avaliação da colecção. Com esta avaliação, feita por Gary Nadaer e que eleva o valor total da colecção Berardo a 500 milhões de euros, a Caixa consegue aumentar o valor da garantia.  E assim evitar o registo de mais perdas potenciais, as chamadas imparidades.

Porque têm os bancos medo de uma reavaliação impendente das obras de arte expostas no CCB? O que aconteceria se se concluísse que não valia o suficiente para garantir os empréstimos? Lá teria de registar perdas que exigiam mais capital que não existia, na altura. E se não existia dinheiro para a CGD, menos ainda havia para o BES de Ricardo Salgado ou mesmo para o BCP.

O jogo do “faz de conta” dos bancos, em que fingem que têm garantias que podem ir buscar para amortizar o empréstimo, é ainda amais absurdo se o confrontarmos com os direitos que o Estado tem sobre a colecção. Berardo dá como garantia títulos de uma Associação que os bancos não sabem se é ou não dona da colecção. Colecção essa que, por sua vez, é alvo de um contrato com o Estado desde 2006 e renovado em 2016 para vigorar até 2022. Ao mesmo tempo que a CGD começa a executar Berardo, em Agosto de 2016, vemos o Estado a renovar com e o acordo para o CCB em Novembro do mesmo ano.

O Governo diz que fará tudo para defender a colecção Berardo. A ministra da Cultura Graça Fonseca disse que o seu Ministério está em articulação com a Justiça e as Finanças para defender a integridade, a não-alienação e a fruição pública” das obras expostas no CCB. Se assim é, os bancos nunca poderão executar essa garantia, no sentido de venderem as obras para receberem o dinheiro. Nada de novo. A ministra nem precisava de o dizer. Basta pensarmos no drama nacional que causou a possibilidade de vender as pinturas de Miró que pertenciam ao BPN e que serviria para tapar parte do buraco que esse banco causou.

O dinheiro de Berardo dificilmente será recebido. Tudo o resto que tem, mesmo que se venha a provar que é seu, não chega a mil milhões de euros. É até duvidoso que conseguissem recuperar todo esse dinheiro se pudesse executar verdadeiramente a colecção.

Joe Berardo é mais uma personalidade da teia de cumplicidades que se construíram na era de José Sócrates. Logo na altura se percebeu que fazia parte do jogo de controlo do BCP, nunca se soube bem a trabalhar com quem ou para quem. Sendo certo que para Berardo o importante é não perder dinheiro nem a sua colecção.

O que não podemos fazer hoje é esquecer quem foram os responsáveis por essas acções. No caso dos bancos, os responsáveis foram aqueles que assinaram os financiamentos, que usaram o dinheiro dos depositantes para pagarem guerras de poder. Joe Berardo tem responsabilidades, mas é, de longe, o menos responsável.

Se ouvirmos o que diz, percebemos que, à sua maneira, tem razão quando diz que tentou ajudar os bancos. Em 2008 poderia ter saído de cena dizendo executem as garantias que têm – ou seja, nada ou as acções em queda a pique do BCP. Não o fez. Se o tivesse feito, os bancos não poderiam ter fingido que estavam óptimos.

Em vez disso, Berardo deu aos bancos garantias de “faz de conta”, os tais títulos da Associação, para que os bancos pudessem maquilhar as contas. Fez isso para tentar, nas palavras dele, “acomodar o que os bancos queriam”. E concordou com isso: “desde que eu não seja responsável pelo que vai acontecer, ok”.  Claro que hoje não quer ser o responsável pelo que aconteceu, não quer pagar essa factura de “ter ajudado os bancos”.

Usar agora Berardo para tapar as responsabilidades de outros é tão grave como tê-lo usado como protagonista principal da guerra pelo controlo do BCP.

Uma cronologia de coincidências

3 de Abril de 2006Assinatura do acordo entre o Estado português, representado pelo primeiro-ministro José Sócrates e a ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, e Joe Berardo para a exposição da sua colecção de arte no CCB. O acordo

27 de Abril de 2006 – A CGD aprova o primeiro empréstimo a Joe Berardo, nomeadamente à Metalgest. Um empréstimo de 50 milhões de euros. Para que serviu este empréstimo, perguntou Mariana Mortágua na comissão parlamentar de inquérito. Para comprar acções, a maioria do BCP, respondeu Berardo.

25 de Junho de 2006Inauguração do Museu Coleção Berardo com a presença de José Sócrates e Joe Berardo. Abria as portas com novas obras compradas recentemente.

28 de Maio de 2007 – A CGD aprova um novo empréstimo, mais concretamente uma “facilidade de crédito”, à Fundação Joe Berardo, no montante de 350 milhões de euros. O objectivo é a compra de acções que servem como garantia

29 de Abril de 2008 – Novo empréstimo de 38 milhões de euros, o primeiro em que Joe Berardo dá um aval, como segundo mutuário.

Novembro de 2008 – Joe Berardo entra em incumprimento, ou seja, deixa de pagar os juros do empréstimo. Será o primeiro de mais dois incumprimentos.

Finais de 2008 – A CGD reestrutura a dívida recebe como garantia 40% dos títulos da Associação Colecção Berardo. Tem nesta altura apena suma avaliação da colecção que data de 2006, feita pela Christie’s. E concede 18 meses de carência de juros.

Final de 2010 – Berardo entra de novo em incumprimento, o segundo.

Maio de 2011 – Os três bancos credores – CGD, BCP e BES – estabelecem um acordo conjunto. A CGD começa a vender nesse ano acções do BCP para com isso receber os juros do empréstimo.

Finais de 2015 – As acções do BCP esgotam-se. Berardo entra no sue terceiro incumprimento.

Agosto de 2016 – Primeiro processo de execução da CGD sobre Joe Berardo.

23 de Novembro de 2016 – Assinado o novo acordo entre o Estado português e Joe Berardo para manter a colecção no CCB até 2022.

Novembro de 2017 – Processo de execução da CGD sobre a Metalgest

Abril de 2019 – Dois processos de execução da CGD, um sobre Joe Berardo, outro sobre a Fundação Joe Berardo, a Metalgest, a Moagens e o próprio Joe Berardo.