Pequena aldeia citadina de brancos, negros, indianos e cristãos, e muçulmanos, brâmanes, e ateus.
Jorge de Sena, sobre a Ilha de Moçambique
Constatando a confusão reinante em muitos dos debates (e declarações) recentes nos media sobre esta temática, será talvez útil um contributo para procurar esclarecer, reflectindo de modo sereno, avisado, e informado.
O aspecto mais relevante e evidente, nas discussões sobre estes temas, tem sido o da constatação de, na sua maioria, estarem viciadas à partida – seja por uma série acumulada de olhares ou visões distorcidas, de pressupostos erróneos, de confusões conceptuais e históricas – até de forte, enraizada e endémica ignorância, que chega à dimensão colectiva, e a inunda.
Porcuremos identificar de modo organizado os vários problemas e falhas de pensamento que têm abundado pelos escritos e afirmações a público (um dos argumentos mais fantásticos que vimos utilizar é o de que, se formos analisar racionalmente, estamos a usar a lógica e a cultura do pensamento dominante e “colonialista”, que se quer extripar!):
Teremos então, como vários conceitos ou pressupostos que me parecem errados à partida, de uso corrente:
- a culpabilização, ou assunção voluntária da culpa colectiva
- o presentismo, ou visão presentista de processo histórico
- a visão ideológica, deliberadamente parcial, da realidade
- o igualitarismo, ou opção por tudo ver de modo unitário
- o radicalismo ou fundamentalismo das abordagens/leituras
- a atitude paternalista em relação aos ex-colonizados
- A culpabilização:
Olhar os processos históricos, sócio-políticos, civilizacionais e culturais sustentando a “culpa” que teremos hoje por factos ocorridos no passado, julgados negativos, é uma atitude moralista, de base ético-religiosa judaico-cristã se se quiser, mas que distorce o modo de compreender e estudar a realidade, os factos ocorridos e as suas consequências a todos os níveis.
Porque esta realidade é, foi e será sempre complexa, feita de inúmeros aspectos que a explicam, definem e caracterizam – escolher apenas um olhar de culpabilização e consequente imediata assunção se querer “pagar pelos erros cometidos” é uma opção simplista, abusadora, excessiva, de “mea culpa”, que leva a uma postura equivocada – para mais, se os temas a que se refere são polémicos, discutíveis, delicados – como é o caso.
Afinal, a culpa é polifacetada; não há, na generalidade dos casos, os inocentes de um lado e os culpados, do outro…e há nos processos históricos todo um mundo de humanidade, de criação, de vida, de construção – como de violência e destruição – em que todos participaram, para além da tal “culpa”.
Ex.: a escravatura foi agenciada por negros, brancos, islâmicos e cristãos. Querer que apenas alguns destes grupos tenham sido os seus agentes, é obviamente falsear a realidade. Querer que alguns são mais culpados do que outros, por terem maior número de escravos imputados no seu devir, é contabilidade kafkiana.
O presentismo:
A leitura e interpretação daqueles processos que assume uma atitude “presentista” perante os factos históricos é igualmente e errónea e abusadora.
A questão é que, em cada momento e fase histórica, as condições (“objectivas e subjectivas”, pois então!), as circunstâncias e os contextos são uns, mas nas fases seguintes são já outros. E cada geração e época foi responsável pelas suas acções num certo ambiente social-político e cultural, e não noutro. Na actualidade, querer que a presente geração pague pelos actos realizados em outras épocas e por outras gerações é assim, no mínimo, absurdo.
E onde terminaria a imputação de responsabilidades, nesta visão actualista, obcessivamente presentista, na cronologia do mundo? Haveria, quanto a opressões por invasores, evidente lugar a culpas da fase colonial de há 100 a 50 anos atrás; mas em relação ao Brasil e colónias hispânicas, de há 200 anos e mais? Já não tanto? E dos colonos norte-americanos (e dos índios) sobre o inglês opressor, da fase de há 300 a 250 anos? Menos um bocadinho? E, por aí fora, sobre os islâmicos que ocuparam a Península Ibérica há mil e tal anos, já teriam muito pouca culpa? E sobre os Romanos que a ocuparam também, há mais de 2000 anos – quase nada? Onde iríamos parar…?
A visão ideológica:
Olhemos brevemente exemplos do(s) passado(s) e dos seus processos históricos coloniais: as civilizações são, foram e serão feitas de colonização (não de “colonialismo”, que é o olhar ideológico sobre o facto colonial), contendo aspectos de exploração, de viagem e de ocupação, etc – é um modo humano (e não só, também biológico, animal) de se avançar, através da evolução dos processos históricos – dos que dominavam o fogo sobre os que o não conheciam, passando pelos da pedra polida mandando nos da pedra lascada, dos que usavam o ferro sobre os que só conheciam o bronze, e por aí fora, passando pelas grandes invasões e ocupações imperiais levadas a cabo por chineses, indianos, persas, egípcios, aztecas — sobre territórios e gentes, quase sempre brutalmente dominadas e exploradas.
No ocidente tivemos os Gregos, os Romanos, a Igreja Cristã, as Expansões Marítimas Europeias, a Civilização Industrial — com os seus longos e extensos cortejos de violências e explorações — mas também com criações notáveis e avanços na melhoria da vida dos povos.
Os factos coloniais sempre incluíram, como quaisquer outros processos humanos, lados benéficos e positivos, e aspectos negativos e até execráveis. Querer separar artificialmente, a partir de bases ideológicas meio ocultas, as coisas “más” das “boas”, associando um certo grupo ou entidade colectiva apenas a um lado “bom” e um outro sómente ao lado “mau”, é simplista, e gera catadupas de equívocos.
Vamos pedir indemnização aos actuais italianos pelo que os Romanos fizeram de violento e opressivo, na ocupação colonial da Ibéria? E ao mesmo tempo, vamos devolver tudo o que eles aqui deixaram, língua, pontes e cidades? Vão os norte-americanos exigir reparações aos ingleses do Brexit pela exploração colonial de antes de 1776? Vão os brasileiros reclamar pela culpa lusitana, por escravidão e violências — e terem de assumir a “devolução” (e como) de todas as suas belas urbes de criação portuguesa?
E por aí fora: não teria fim o cortejo de atitudes absurdas, fora do seu tempo e época, se se persistisse numa atitude de a um tempo reduzir tudo ao presente, e baseado numa atitude moralista e justiceira…
O igualitarismo:
A colonização portuguesa não terá sido nem melhor nem pior do que várias outras – mas certamente também não foi “igual” a essas outras (aliás, também diferentes entre si) – porque correspondeu a uma cultura e civilização nacional específica, própria, com características identificadoras, indissociáveis de como se processou e evoluiu.
Não é aqui o lugar para desenvolver este tema, mas basta afirmar alguns aspectos básicos como o de aquela colonização ter partido de um padrão da fase tardo-medieva; a de ter durado no tempo histórico mais extenso ou longo entre todas; a que foi mais “pobre”, recorrendo até à miscigenação, para sobreviver; a que foi historicamente a primeira com expansão planetária, assim ganhando novas características, etc, etc – para logo a individualizar. E isto quer dizer que, sendo como foi, a colonização lusa não pode nem deve ser igualizada à força a qualquer das colonizações europeias, todas elas com características próprias.
Querer escamotear este carácter e processo específico, marcando a colonização portuguesa como igual às restantes euro-colonizações, é, novamente, falsear os processos históricos e a realidade do acontecido, e portanto ignorar — e sobretudo não compreender — os seus valores, aspectos concretos de afirmação e expressão, com todos os fenómenos negativos imanentes, mas também com os positivos, interdependentes, interligados, sobre o que não se poderá assim bem reflectir e actuar.
O radical-fundamentalismo:
Todos os aspectos que antes foquei interligam-se e articulam-se entre si, agenciados e manipulados pelos cada vez mais descontrolados grupos de pressão mediáticos, académico-universitários, institucionais – o resultado tem sido o desencadear e crescente galopar de uma espécie de fundamentalismo endémico, de radicalização de atitudes, que tem gerado tensões, problemas, conflitos, numa espiral de violência de atitudes, de conceitos e de opiniões: gritam que “eles” são hoje culpados da “opressão” passada, que “eles” têm de pagar, que “eles” são todos iguais, que “eles” são claramente brancos, homens e cristãos: à partida maus e acusáveis.
E deste modo, não só não se quer pensar nos vários aspectos de cada questão levantada, muito menos debatê-los — como se acusam desde logo os que o querem fazer de seguirem as linhas de pensamento reaccionárias, bases estruturais do “poder dominante”…
Note-se também que é muito corrente nesta visão parcial e sectária a ideia de que após a fase colonial, tudo foi correcto e até mar de rosas…ora a realidade é bem outra – o cortejo de mortandade e carnificina das décadas da fase pós-colonial, sobretudo em Angola e Moçambique (aqui ainda em pleno curso), onde o racismo propagado entre negros, alimentado por um tribalismo recrudescente (por exemplo, dos grupos dominantes em Luanda e em Maputo, sobre vários povos das regiões desses países) quase faria esquecer as baixas da guerra colonial – na proporção, digamos, de cem mil para dez mil…
A visão das coisas considerando só um dos lados das questões leva a isto… e afinal, como distinguir o colonizador do colonizado? Pela cor? E então os chineses, os indianos, os Goeses e os Macaenses, de que cor são? E os milhões de mestiços afro-brasileiros, fruto das miscigenações seculares? Pelo seu papel na sociedade colonial? Mas com tantos graus (e degraus) de funções na sociedade colonial, como definir uma fronteira entre o que explorou e o explorado? É claramente impossível, e para mais inútil, ir por aí…
O paternalismo neo-colonial:
Querer compensar hoje os povos e nações que foram sujeitos aos processo de colonização, como se tal fosse um facto condenável em absoluto, ignorando os valores contraditórios e ambivalentes dos processos coloniais — é, finalmente, uma atitude de claro paternalismo, pois que considera que, se os povos antes colonizados não têm agora capacidade para se “levantarem do chão”, é por terem sido oprimidos, e se, passadas décadas e décadas, mesmo séculos, depois desses processos terem acabado, necessitam ainda — e cada vez mais — de uma ajuda, de incentivos, de compensações, de pagamentos, de devoluções, de indemnizações, etc, etc – é ainda por culpa, omnipresente, intemporal, constante, moral e infinita, do antigo opressor colonial…
Esta visão limitada é ofensiva dos povos que se conseguiram autonomizar das anteriores fases de dominação colonial. Equivale a passar-lhes uma atestado de incompetência colectiva, nos planos operativo, mental, intelectual e cultural — escamoteado pela afinal cínica ideia de que os querem compensar… e é uma atitude incongruente em si, quer da parte dos europeus que a assumem, quer dos ex-colonizados.
Contra o desconhecimento, a força das criações culturais
Afinal, as realizações resultantes dos processos coloniais têm inúmeros aspectos positivos a considerar. Aspectos que são, em muitos campos da cultura e da sociedade, assinaláveis — e que existem precisamente pelo devir colonizador, que permitiu este tipo de misturas, recriações, resultando em novos olhares e entendimentos do Mundo. Apenas focando a experiência portuguesa colonial:
Que dizer da música pós-colonizações, do Brasil a Angola, da “sôdade” de Cabo Verde ao Zeca Afonso do “Venham mais cinco”? E da gastronomia luso-transoceânica, com as miríades de sabores novos, viajados e reinventados? Podemos deliciar-nos com o apuro do sarapatel, do vindalho (tão goeses como alentejanos), do tempura nipo-jesuíta (resultando nos “peixinhos da horta”), das cachupas às espetadas damanenses… E das literaturas, e da poesia… E, na cultura material, podemos avaliar a construção de cidades e arquitecturas, realizações colectivas por gentes dominantes e dominadas, únicas no seu carácter, espaço e forma, na suas características resultantes do “espírito do lugar” e da articulação apurada entre climas, materiais e tecnologias! Urbes belas e extraordinárias, do Rio de Janeiro a Ouro Preto e Luanda, de São Tomé a Goa e Damão, de Angra a Macau e Nagasaki, da Cidade Velha a Lourenço Marques/Maputo – cidades que, servindo agora os povos libertos, mereceram o reconhecimento internacional da UNESCO como obras de cultura e de dimensão colectiva, sendo em muitos casos Património Mundial (em maior número fora de Portugal do que cá dentro)… provando a capacidade da colonização gerar algumas mais valias de escala universal…!
É que, afinal, estas criações não existiriam sem o facto colonial. É pois necessário abrir as mentes à discussão destes temas, evitando a tendência para um pensamento unilateral. Para ver o mundo em todos os seus tons — e não só a preto e branco.