As recentes notícias sobre a substituição da equipa responsável pela ABM – Associação de Beneficiários do Mira, por uma comissão nomeada pelo Ministério da Agricultura, a pretexto  de aspectos legais ou processuais, faz temer o pior, a todos os que vivem nas suas terras, casas e propriedades, com base no abastecimento de água a partir da albufeira de Santa Clara.

Esta albufeira, com quase meio milhão de hm3 de capacidade, é a quinta do país, acima da Aguieira e do Lindoso, apenas abaixo, além  do Alqueva, de Castelo de Bode, do Cabril e do Alto Rabagão. Infelizmente, encontra-se a 34% dessa capacidade, ao contrário de todas as outras maiores, devido à seca prolongada por anos sucessivos. E este problema parece ter sido a fonte dos eventos graves recentes – em casa onde não há pão…

Uma obra notável, com muito valor e futuro — mas desleixada, não aproveitando as suas potencialidades

Sabe-se que a obra de Santa Clara, que comemorou meio século há pouco, com seu sistema de barragem, canais e aquedutos – a última grande obra iniciativa de Salazar, com um padrão comemorativo em mármore (que curiosamente sobreviveu à nova era política do pós 25 de Abril, com a intacta citação sobre o “plano de rega” gravada no local) – é um conjunto planeado e edificado de excelência, nomeadamente pelos notáveis projectos por Raul Chorão Ramalho (casas de cantoneiro, estalagem, aquedutos, sede da ABM, etc), património arquitectónico e infraestrutural que devia estar classificado como o todo coerente e qualificado que é.

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Mas o meio século de água guardada e corrente não foi acompanhado pelas medidas de gestão, preservação, restauro, manutenção e actualização de toda a rede e do seu sistema material, que se impunha, e mais se impõe na fase de seca sistemática que vivemos: há avultadas perdas de água nas condutas, fugas descontroladas, e sobretudo – facto escandaloso na sua consequência – não se executou ainda uma obra básica, de retenção das descargas finais da água dos canais, que continuam, ao que se sabe – configurando quase um acto criminoso pelo desleixo – a despejar no Oceano! Falamos, pelos dado que temos, de 30% de perdas.

O canal de transvase desde o Alqueva para a (quase vazia) albufeira de Monte da Rocha, que se situa a perto de Santa Clara, cuja obra de iniciou recentemente, devendo estar pronta em 2025, não contempla a ligação a Santa Clara, que fica, em cota mais baixa (!), apenas a cerca de uma dúzia de quilómetros a sudoeste – não se compreende que a quinta barragem do país não possa contar com este apoio, comprovado que não tem água suficiente há mais de uma década – numa necessidade que se torna de dia para dia dramática, constituindo uma autêntica questão de sobrevivência para todos os que vivem e trabalham contando com a sua preciosa água.

Houve, em tempos de seca extrema, intervenções, a relembrar aqui, de despejo de emergência, por contingentes de camiões-cisterna, de água em barragens quase secas, no centro do país. Esperemos não chegar a este limite!

O abuso continuado da utilização da água para as estufas de frutos vermelhos – versus agricultores, agentes de turismo e “nómadas urbanos”

Já aqui referimos noutras oportunidades a gravidade da exploração dos frutos vermelhos numa região – e não esqueçamos que o concelho de Odemira é o maior do país, do tamanho de mais de duas ilhas da Madeira – que apresenta em anos a fio os sintomas de seca e/ou escassez de água. Expliquei a gravidade deste tipo de exploração, com carácter quase “colonial”, pois extingue de modo brutal as qualidades nutritivas dos solos, injecta químicos potenciadores da produção, e após essa acção intensiva, deixa os resíduos poluentes das toneladas de plásticos, sobre uma terra exaurida e seca, envenenada.

E tudo isto numa área classificada como Parque Natural da Costa Vicentina, onde a população que vive da trabalho rural é marcante (não, não são primitivos trogloditas escavando a terra à enxada, mas sim pequenos e médios empresários rurais, informados e ativos, com produção de cereais, de cortiça, de leite, de gado, etc); e onde vêm despontando inúmeras unidades de turismo em alojamentos locais, que contribuem para a recuperação e dinamização das preciosas e múltiplas “arquitecturas de terra” tradicionais, por toda a área concelhia (a população aumentou em mais de 13% em dez anos, atingindo agora cerca de 30.000 habitantes!).

Este aumento que evidentemente inclui asiáticos trabalhando por uma vida melhor nas estufas (mas num processo de trabalho quase escravo, que tem sido objecto de denúncia), não deixa de incluir muitos estrangeiros, europeus activos ou reformados que escolheram o nosso país, e inúmeros casais e famílias jovens que “escolheram o interior”, de ar puro e vida calma, para assentar, em vez da saga citadina cada vez mais pesada…E sem esquecer, os “mais velhos”, nacionais, que escolheram viver as suas aposentações numa terra boa e vivificante, cultivando hortas e contribuindo para inocular pequenas acções culturais dinamizadoras, ligados a associações locais.

Defendi que o crescimento descontrolado, desproporcionado ou anormal da exploração de estufas com frutos vermelhos, usando o argumento (baixo) de ser importante “para a actividade económica e as exportações” – tese a que o Ministério da Agricultura parece ser muito sensível — era um acto grave, consentido, sem qualquer justificação à luz da legislação de protecção dos Parques Naturais, que o Ministério do Ambiente e da Acção Climática devia tutelar (directamente o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, dentro da Rede Nacional de Áreas Protegidas, com a Agência Portuguesa do Ambiente – oh selva institucional!). E, neste quadro, como explicar o total silêncio destes responsáveis sobre a matéria da exploração intensiva e degradadora de solos, da poluição das estufas, que cresceram sem qualquer obstáculo na última década? Como  interpretar este silêncio, por exemplo em relação à constituição da actual comissão de gestão da AMB nomeada por outro ministério, na sua aparente relação com os interesses das estufas? Então quem devia proteger por lei este território precioso nada diz, não intervém neste quadro tão gravoso?

A consciência das autarquias unidas, defendendo as comunidades, contra a acção incorrecta do governo?

Até há pouco, antes da equipa da ABM (formada por técnicos e quadros locais, “filhos da terra”) ter sido compelida a suspender a sua acção moderadora, havia apesar de tudo um consenso entre as autarquias envolvidas (não esqueçamos Aljezur além de Odemira), a ABM e a comunidade residente. O chamado Poder Local existe, e defende naturalmente os valores dos que aqui vivem e trabalham – mas agora, parece estar aberto – à força – o caminho para impôr decisões ou actuações que passarão por cima dessa comunidade, com a tal justificação estafada do “valor económico para exportação” dos malfadados frutos vermelhos!

Numa nota recente (28/6) conjunta dos dois municipíos afectados, sente-se uma postura bem moral e positiva, na procura de defender a comunidade local, numa situação que se assume como de emergência; citemos: “…os municípios de Odemira e Aljezur lembram que têm desenvolvido um conjunto de esforços junto das entidades competentes e do próprio Governo com o objetivo de garantir a sustentabilidade futura destes dois territórios (…) Esta postura, continuam, levou a um ‘primeiro compromisso’, para a realização de um conjunto de ações e investimentos visando uma melhor e mais robusta gestão da água proveniente da albufeira de Santa Clara. Entre estas ações constam a implementação de um modelo de gestão que permita repor a barragem, num prazo de cinco anos, à cota 116, assim como a concretização de um investimento de 30 milhões de euros, assumido pela Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), para diminuição de perdas e na melhoria da eficiência de todo o sistema a jusante da barragem. Está igualmente previsto projetar e concretizar o investimento necessário que garanta a segurança do abastecimento público, com base num modelo de captação e distribuição dedicada a partir da barragem, num investimento aproximado de 36 milhões de euros a realizar pela empresa Águas Públicas do Alentejo (AgdA), acrescentam. A par destes investimentos, as câmaras de Odemira e Aljezur esperam que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) autorize a exploração [da albufeira de Santa Clara] à cota 104. E abaixo desta apenas e exclusivamente para consumo humano, afigurando-se como a única solução possível, à data, para garantir a disponibilidade de água para cada um dos diferentes tipos de consumo.”

O pesadelo, que pode advir de uma acção desinformada, autoritária, cega ou discricionária que se pretende evitar é, evidentemente, a pretexto de alimentar com a pouca água disponível as estufas, cortar a mesma água aos que dela vivem, não só para exportar, mas para trabalhar, produzir riqueza agrícola, pecuária, turística ou cultural, e/ou, simplesmente, para fruir e viver, “neste interior que parece esquecido”.

Esperemos que o bom senso, a boa gestão, o essencial diálogo entre as forças locais e  do governo e sobretudo o evitar quezílias políticas ou outras, evitem o afundar definitivamente nesta pouca água que nos resta…!

1 Julho 2023