Há 25 anos, a queda do muro de Berlim foi a surpresa do século. Ninguém a esperava, ninguém a previu. Ora, ao contrário do que se diz, ninguém aprecia surpresas. Por isso, há 25 anos que nos esforçamos por esquecer o assombro e a irrealidade do muro a cair, e do que veio a seguir: Ceaucescu fuzilado, Leninegrado outra vez São Petersburgo. E como conseguimos isso? Explicando e explicando — até não haver nada para explicar, nada para nos surpreender. E no entanto, a queda do muro a 9 de Novembro de 1989 devia-nos continuar a surpreender. Porque se apagarmos a surpresa, nunca compreenderemos o que aconteceu.
A primeira maneira de “explicar” é ir ao fundo, escavar os “factores estruturais”. Deste ângulo, a chave parece ser o petróleo soviético. A União Soviética tinha um comércio externo de país do Terceiro Mundo: exportava energia e matérias-primas, e importava capitais e tecnologia. No caso do petróleo, dependia da sua extracção ser barata na URSS e de os preços serem altos nos mercados mundiais. Ora, em meados da década de 1980, os preços mundiais caíram, ao mesmo tempo que o petróleo soviético se tornou mais caro. A URSS perdeu simultaneamente receitas e produção, e deixou de poder sustentar os Estados vassalos. Tudo estaria determinado, a começar pela queda do muro em Berlim.
A outra forma de explicar consiste no contrário: é vir à superfície, dar importância ao acidental. Por exemplo, falar de Gunther Schabowski, o membro do Politburo da RDA que, na conferência de imprensa da noite de 9 de Novembro, foi suficientemente confuso sobre o novo regime de viagens ao estrangeiro para criar o rumor de que as passagens para o Ocidente iam ser abertas imediatamente. Ou de Harald Jager, o agente da Stasi de guarda ao muro, a quem os seus superiores deixaram sem instruções, e que, perante uma multidão a crescer, acabou mesmo por deixar passar toda a gente. Tudo teria acontecido de súbito, caoticamente.
Estas duas explicações são verdadeiras. Mas nem uma, nem outra nos não dão conta da surpresa. Porque é que ninguém previu a queda do muro?
Porque de facto ninguém estava a planear desmantelar o comunismo. Foi essa a primeira causa da surpresa. Na década de 1980, a liderança soviética percebeu que perdera a guerra tecnológica e a guerra do bem estar com o Ocidente. A União Soviética era o país das filas para o pão e as suas armas estavam obsoletas, como se constatara em Junho de 1982 na grande batalha aérea do vale de Bekaa, quando os aviões israelitas, de origem americana, abateram em duas horas 80 aviões sírios, de origem soviética, sem sofrer uma baixa. O desastre nuclear em Chernobyl (1986) tornou-se o emblema da decadência. As outras ditaduras comunistas estavam financeiramente arruinadas, com dívidas enormes ao Ocidente. Era preciso fazer alguma coisa. Mas Mikhail Gorbatchev, o mais jovem líder da União Soviética em décadas, era um idealista do comunismo. Não quis simplesmente renunciar à economia planificada e abrir os mercados, como já tinham feito os líderes da China. Julgou que podia gerar um novo dinamismo comunista aumentando a participação dos cidadãos.
Ora, a experiência da China e da União Soviética na década de 1980 mostrou que o comunismo, no sentido do domínio de um partido comunista (e nunca houve outro tipo de comunismo), é compatível com o capitalismo, mas é incompatível com a liberdade. Os doutrinadores do comunismo diziam o contrário: o comunismo era a negação do capitalismo, mas levaria a uma liberdade muito maior. Estavam errados. Nunca houve comunismo sem terror policial. Gorbatchev acreditou que, se lhes desse liberdade e participação, as populações entusiasmar-se-iam com a reconstrução do comunismo. Não se entusiasmaram. A experiência serviu apenas para oligarquia comunista se desorientar e dividir.
Mas a China conciliou o domínio do partido comunista com o capitalismo através do massacre de Tiananmen (Junho de 1989), porque pôde traduzir esse domínio em termos nacionalistas. O comunismo europeu, porém, ao contrário do chinês, do vietnamita ou até do cubano, não tinha apelo nacionalista. A União Soviética era um império colonial, com uma ideologia internacionalista: não apelava aos colonizados, nem aos colonizadores. No leste da Europa, as revoltas populares da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968 tinham provado que só o Exército Vermelho mantinha os comunistas no poder. Quando as massas perceberam que o Exército Vermelho não ia intervir, ocuparam as praças, exigiram eleições livres, e em Berlim Leste, na noite de 9 de Novembro, atravessaram o muro para o Ocidente. O comunismo nunca fora mais do que uma prisão de povos. Quando os guardas deixaram de guardar as celas, toda a gente fugiu.
Porque é que então a queda do muro e o colapso comunista não foram previstos, logo que Mikhail Gorbatchev enriqueceu o conhecimento ocidental do vocabulário russo com as palavras perestroika e a glasnost? Aqui entra o segundo factor da surpresa. Até ao Outono de 1989, mais: até à noite de 9 de Novembro de 1989, os ocidentais desconfiaram de Gorbatchev (Bush pai, na sua campanha eleitoral de 1988, lembrou repetidas vezes: “a Guerra Fria não acabou”). Nem o tratado sobre armas nucleares de 1987, nem a retirada do Afeganistão (Fevereiro de 1989) os convenceram. No entanto, em 1976, um jovem antropólogo francês, Emmanuel Todd, escrevera o livro mais premonitório do século XX, A Queda Final (logo traduzido para português), a sugerir que a URSS se estava a tornar num país do Terceiro Mundo, e não iria durar muito. Ninguém reparou. Ninguém estava preparado para reparar. Pelo contrário, a crise que se esperava era a do Ocidente.
Os choques do petróleo de 1973 e 1979, no meio da Grande Inflação, tinham posto a correr a ideia do fim do capitalismo. O Watergate em 1974 e o colapso do Vietname do Sul em 1975 haviam convencido toda a gente da fraqueza do poder Americano. Todos os dias os geoestrategas julgavam ver a expansão da mancha vermelha no mapa do mundo. A União Soviética à beira do fim? Impossível. A ascensão política de Thatcher e de Reagan assentou, muito mais do que na liberalização económica, na ideia de resistência à expansão soviética. E como tal, é óbvio que não dava jeito que o “perigo soviético” desaparecesse. Por tudo isso, os governos ocidentais pouco mais fizeram do que assistir aos acontecimentos (o presidente Bush pai tinha ainda outra preocupação: evitar encorajar revoltas populares que depois o Ocidente não poderia ajudar, como em 1956).
Porque é que é importante lembrar a surpresa? Porque se Gorbatchev tivesse intenções de desmantelar o comunismo, nunca teria chegado ao poder. Porque se os ocidentais estivessem convencidos de que tudo ia acabar, talvez tivessem sido tentados a “ajudar”, e teriam provavelmente provocado uma reacção. Muita coisa estava determinada, muita coisa foi acidental, mas tudo foi possível, em grande medida, porque ninguém estava à espera. Os homens fazem a história, mas às vezes é só quando não sabem o que estão a fazer que a história acaba por ser feita.