Todos nós sabemos que a história da ajuda humanitária e do apoio ao desenvolvimento não é, necessariamente, uma história feliz. Basta pensarmos no exemplo do Haiti e do terramoto que lá ocorreu em 2010. Eu estava no Fórum Económico Mundial de Davos e lembro-me de escutar um discurso de Bill Clinton para angariar fundos e salvar o país. Durante o ano seguinte, 11 mil milhões de dólares foram angariados e Organizações Não Governamentais (ONG) e voluntários de todo o mundo foram em socorro do Haiti.
Mas a dura realidade de tudo isto foi que, um ano depois, um milhão de pessoas ainda vivia em tendas, uma crise de cólera tinha matado mais de 2.500 pessoas e apenas 5% dos destroços do terramoto tinham sido removidos. Daqueles 11 mil milhões de dólares que foram angariados, apenas 10% foram investidos na economia do Haiti. Hoje, volvidos sete anos, 2,5 milhões de haitianos ainda precisam de ajuda humanitária, de acordo com as Nações Unidas.
Exemplos como este foram manchando a bandeira humanitária e do voluntariado. Foram manchando este ideal humanista de que o ser humano pode ser genuinamente altruísta. E, aos poucos e poucos, fomos perdendo a confiança no voluntariado. E isso reflete-se.
De acordo com o último Inquérito ao Trabalho Voluntário do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de voluntariado no nosso país é de 11,5%, muito abaixo da média europeia de 24%. E quando falo de voluntariado, falo não apenas do voluntariado feito através de organizações, mas também do voluntariado que fazemos informalmente para pessoas do nosso bairro. Apenas um em cada dez portugueses faz voluntariado.
Assim, é urgente questionarmo-nos: será que o voluntariado realmente importa? E a resposta a esta pergunta não é simples.
Talvez o voluntariado não acrescente valor. Talvez o voluntariado seja só um conjunto de ações infantis e ingénuas, embora bem intencionadas, que não são eficazes no longo prazo. Talvez o voluntariado gere desemprego, porque leva as pessoas a trabalhar de forma não remunerada. Talvez o voluntariado seja só feito para fazer os voluntários sentirem-se melhor. E, mesmo que seja importante, talvez seja só para alguns, para quem tem tempo e ganha créditos.
Eu sou voluntário desde os 16 anos e acredito que o voluntariado não é nada, nada disto.
Mas, para um economista como eu, acreditar não basta. É preciso olhar friamente para os dados e encontrar a evidência estatística que justifique o investimento dos escassos recursos que temos. E é na qualidade dupla de voluntário-economista que partilho sete coisas que aprendi sobre o voluntariado ao longo destes últimos dez anos, que talvez ajudem os nossos leitores a perceber porque é que importa e em que condições:
1. O voluntariado gera valor económico e esse valor é quantificável. Não é por um trabalho não ser remunerado que não gera valor. Na prática, o que os economistas fazem é atribuir à hora de trabalho voluntário o mesmo valor pelo qual essa hora seria normalmente remunerada no mercado de trabalho. Usando este método, o INE estima que as horas de trabalho voluntário em Portugal têm um valor equivalente a 1% do PIB (qualquer coisa como 1,8 mil milhões de euros).
2. O voluntariado pode mudar uma vida. E a minha própria vida é testemunho disso. Aos 16 anos tive a oportunidade de aprender breakdance na rua com amigos que se voluntariaram para me ensinar. Hoje tenho 26 anos e não só o breakdance continua a fazer parte da minha vida, como me deu uma coragem e autoestima que eu não sabia que tinha. Esta experiência levou-me a co-fundar, em 2010, o Movimento Transformers – um franchising social de escolas de superpoderes que já está a transformar 22 comunidades em Portugal.
3. O voluntariado pode mudar milhões de vidas. E o melhor exemplo disto é o da imunização contra a poliomielite. Em meados do século XX a poliomielite paralisava, todos os anos, centenas de milhares de pessoas. Hoje a taxa de incidência do vírus desceu mais de 99%. Isto foi possível não apenas porque na década de 50 foi descoberta uma vacina, mas também porque mais de 10 milhões de voluntários de todo o mundo e de diversas organizações se mobilizaram nos esforços de vacinação de mais de dois mil milhões de crianças em 122 países.
4. O voluntariado não gera desemprego. Não existe evidência estatística de que o voluntariado cause desemprego. Pelo contrário, olhando para os dados dos países da União Europeia é possível verificar que os países com as maiores taxas de voluntariado tendem a ser aqueles com as menores taxas de desemprego. Embora correlação não implique causalidade, este facto é indicativo de que o voluntariado e o emprego são complementares e não mutuamente exclusivos. Este facto é suportado por grande parte da literatura científica produzida nesta área. Por exemplo, um estudo da National Corporation for Community and National Service dos Estados Unidos descobriu que o voluntariado está associado com uma probabilidade 27% superior de empregabilidade, depois de controlar para um conjunto de variáveis demográficas.
5. O voluntariado pode ser para todos. Qualquer um pode ser voluntário porque todos temos um superpoder, um talento e algo para contribuir. E não digo isto de ânimo leve para tocar o coração do leitor. Acredito nisto com toda a força do meu ser, por ter conhecido voluntários de todo o mundo, de todas as cores, origens, penteados, olhares, extravagâncias, religiões, estatura, idades e profissões.
6. Mas as boas intenções não chegam. Nem todo o trabalho voluntário é bom, nem todos podemos fazer qualquer tipo de trabalho voluntário. Tal como destacado num artigo recente do Guardian, a Save the Children e a Unicef têm vindo a alertar, desde 2011, para os riscos do voluntariado internacional em orfanatos em localizações como o Cambodja. Apesar de este tipo de trabalho voluntário ser alimentado pelas melhores intenções, existem evidências consideráveis de que a procura de experiências de voluntariado com crianças no Cambodja, terá levado a um aumento desproporcional do número de orfanatos, criando incentivos para o tráfico de crianças. A Unicef estima que 75% das crianças em orfanatos no Cambodja não são, na verdade, órfãs. Além disso, a alta rotatividade de voluntários tende a ser mais prejudicial para o desenvolvimento das crianças. E isto leva-nos ao último ponto.
7. O voluntariado não é fácil, nem simples, nem tem que ser distante. O voluntariado é difícil, complexo e começa no nosso bairro. Ele só é um verdadeiro instrumento de transformação quando a paixão se alia com a razão. Ele não é uma viagem de verão. É uma forma de estar na vida. Ele não é gente heróica a salvar os coitadinhos. Ele é heroísmo partilhado e celebrado entre todos. Ele não é uma imposição, é uma escolha livre.
E é isso que me traz aqui hoje. Não é dar ao leitor uma lição moralista ou um discurso paternalista sobre onde é que cada um deve aplicar o seu tempo. Mas é antes uma partilha de porque é que, pelo menos para mim, o trabalho voluntário é importante. E, se não for pelo pragmatismo dos números que mostrei antes, que seja por o voluntariado talvez ser essa declaração suprema da dignidade humana. Da dignidade enquanto escolha de onde e como queremos usar o nosso tempo. Se tornarmos cada ação nossa refém de uma transação, então perdemos a liberdade que tanto nos custou conquistar.
E o que somos sem liberdade?
Nós vivemos numa época em que conceitos como a solidariedade ou o voluntariado perderam tanto significado. Perderam tanto significado pelo seu uso banalizado, corrente e descontextualizado, que chegam a ter conotações negativas. Eu acredito que temos que devolver a força a estes conceitos.
O voluntariado não é um monte de tretas.
Se essa dúvida voltar a passar pela sua cabeça, lembre-se que a mudança acontece de forma não linear e misteriosa. O seu gesto – pequeno, corajoso, digno e intencional – faz a diferença. Pode levar tempo, mas vale sempre a pena. Pergunte-se no silêncio da noite que causa o move. E mova-se por ela.
João Brites é economista, bailarino e cofundador do Movimento Transformers. Trabalhou na Fundação Amazonas Sustentável e atualmente transforma o mundo colaborativamente a partir de Nova Iorque como gestor global de Desenvolvimento Sustentável na AB InBev. Juntou-se aos Global Shapers Lisbon Hub em 2013. Este texto foi inspirado numa talk realizada no TEDx Aveiro em 2015 e disponível aqui.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.