Não há, de facto, nada de novo sob o sol. Vem no Eclesiastes: há para tudo uma altura e um tempo certo – um kairos, diz-nos a versão grega dos setenta, a Septuaginta, aquela que Frederico Lourenço se empenhou em traduzir – para cada coisa. Há um tempo certo para a guerra e há um tempo certo para a paz. E o erro e a tontice manifestam-se a todo o momento. Como, por exemplo, quando se confunde o tempo da guerra com o tempo da paz.

Foi esta confusão que fizeram quatro eurodeputadas do PS (Maria Manuel Leitão Marques, Margarida Marques, Isabel Santos e Isabel Carvalhais) a 23 de Novembro, quando, no Parlamento Europeu, se abstiveram da votação da resolução intitulada ”Reconhecimento da Federação Russa como um estado patrocinador do terrorismo”. Quatro em nove eurodeputados do Partido Socialista. A resolução foi aprovada por 494 votos a favor, 58 contra e 44 abstenções. Entre as abstenções contam-se também as dos dois eurodeputados do Bloco. E entre os votos contra, infalivelmente, os dos dois eurodeputados do PC.

É interessante verificar a continuidade que existe entre certos argumentos das eurodeputadas do PS, os do Bloco e os do PCP. Um deles tocou-me particularmente. Segundo Isabel Santos, que exprime uma posição que suponho partilhada pelas suas três colegas de bancada, “a adopção desta classificação arrisca condicionar negativamente o futuro” e visa “inviabilizar qualquer solução diplomática”. Margarida Marques, de resto, também diz que a adopção da resolução implica iniciativas que “são bloqueadoras da manutenção de canais diplomáticos que serão essenciais para uma futura resolução do conflito”. O Bloco não diria melhor. Para este, com efeito, a resolução é “contraproducente do ponto de vista da luta por uma paz justa”. E o PC declara que ela “visa obstaculizar, ou mesmo impossibilitar, o necessário diálogo com vista à resolução pacífica do conflito”.

Esta coincidência é muito esclarecedora. Toda esta gente partilha uma idêntica convicção: a de que devemos, em tempo de guerra, viver imaginariamente, no presente, a paz. Sublinho: no presente. Porque não se trata apenas de pensar numa paz futura e de imaginar como poderá ela ser concebida. Trata-se mesmo de condicionar o presente pela antecipação neste do futuro. Dito de outra maneira, vive-se simultaneamente em dois tempos distintos: o tempo da guerra e o tempo da paz. E, como é bom de ver, o futuro, a paz, deverá ter a primazia sobre o presente, a guerra. O que significa que a batalha travada pelos ucranianos na defesa do seu país assaltado pela inominável barbárie russa que pretende criar um novo Holodomor através do frio e das privações da população civil deve ser limitada em benefício do futuro. Um futuro que acreditam negociável com uma tão fiável personalidade como a de Putin.

Claro que é necessário fazer distinções. O PCP praticamente não esconde o seu desejo da subjugação russa da Ucrânia. A sua posição é ditada por um duplo entusiasmo: negativo (contra os Estados Unidos e, mais genericamente, contra as democracias liberais) e positivo (a sua alucinação, na Rússia de Putin, do defunto império grande-russo da União Soviética). O Bloco – cujo principal mentor, Francisco Louçã, ainda há pouco gozava, em esgares televisivos, com o Holodomor — vive numa contradição: reconhece à Ucrânia o direito de se defender, mas nega à Ucrânia o direito de recorrer ao auxílio da NATO, pela extinção da qual milita. Esta contradição, perceptível ao mais obtuso dos espíritos e que trai as origens ideológicas do Bloco, não o incomoda. Também é verdade que ninguém se dá ao trabalho de lha lembrar. As senhoras eurodeputadas do PS provavelmente não desejam nem o regresso da U.R.S.S. nem o fim da NATO (talvez…), mas estão, é mais do que lícito supor, preparadas para todas as cedências a Putin. A antecipação da paz na guerra, a confusão dos tempos certos para uma e para a outra, ocupa-lhes por inteiro o espírito. Ao ponto de não notarem o óbvio: o radical e ilimitado desejo de destruição do Kremlin. Apesar de tudo o que se vê e se sabe, escancarado em imagens e palavras. O erro e a tontice manifestam-se, de facto a todo o momento. E elas excedem-se em ambos.

É curioso como a palavra “paz” está em todas estas bocas. Tendo simultaneamente em conta a brutalidade da invasão russa e o sofrimento e a heroicidade da Ucrânia e os motivos que agitam aquelas cabeças, uma pessoa apanha-se a pensar que ela lhes devia queimar os lábios. Provavelmente, todas estas criaturas manifestam (e bem) o seu horror pelo encobrimento activo dos casos de pedofilia pela Igreja e pela vontade de olhar para o lado que para ela foi uma tentação maior. Pois bem, o que fazem ao confundir o tempo da guerra e o tempo da paz é um pecado – uso propositadamente, apesar de ateu, a palavra, que é a mais forte que me vem ao espírito – ainda mais grotesco na sua forma e na sua essência, já que o crime está a ser praticado em directo face ao seu olhar, como “um mal imenso para o homem”.

Não nos devemos irritar, já que “a irritação habita o coração dos insensatos”. O Eclesiastes faz muitas vezes pensar em Montaigne, que dirá isto mesmo sob outras palavras. Mas, neste mundo incerto e arriscado – Montaigne não dirá, mais uma vez, coisa diferente do autor do Eclesiastes -, onde fazer longos planos é sinal de futilidade (vanitas), há também um tempo certo para denunciar o erro e a tontice.

“Há um tempo certo para abraçar e um tempo certo para evitar abraçar”. Deixem por favor, senhoras eurodeputadas, o abraço (e a promessa do abraço) para quando a Ucrânia for definitivamente liberta e as tropas russas voltarem para o lugar de onde nunca deviam ter saído. E evitem os acenos propiciatórios todos feitos de preocupações de “não condicionar negativamente o futuro”, como se Putin estivesse muito preocupado com isso – se não é pedir demais. Não há nada de novo sob o sol: já vimos isso muitas vezes. E, pelo menos, poupavam-se tristes manifestações de estultícia.

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