O passado recente habituou-nos que fazer política era privilegiar promessas apresentadas com pompa e circunstância, seguir slogans repetidos à outrance para manipulação de apelo emocional identitário à tribo política e ideológica, em detrimento do exercício racional e mobilização efectiva de Vontades com estratégia coerente e eficaz.

Conhecer a realidade sobre a qual se quer agir com objectividade seria o primeiro passo de um manual de Boas Práticas na acção governativa, de leitura obrigatória para quem se aventurasse no difícil ofício de governar. Atrevia-me a sugerir a divisa dos cirurgiões, introduzida na nossa História por Ambroise Paré no século XV – foi detentor da primeiro cátedra de Cirurgia que ocorreu na Universidade de Paris – e que teve grandes contribuições para a evolução da arte: acreditar no que se vê mais que ver o que se acredita. Era um apelo à objectividade, ao rigor, autonomia e independência de espírito, que continuaram a ser atributos indispensáveis para a prática da nossa arte cirúrgica e para o desenvolvimento da ciência.

Atrevo-me a sugerir o mesmo percurso para a difícil tarefa de governar. Os cientistas, quando se aventuram pela Polis costumam fazer apelo ao conhecimento da realidade objectiva, sem preconceitos, como primeiro passo para actuação em vez de apelo emocional à ilusão das promessas sem alicerce sólido e consistência que aguente os sobressaltos e a imprevisibilidade da realidade. Talvez por isso ou são raros ou têm passagem fugaz. Mas nestes tempos difíceis e talvez sombrios que nos ameaçam, mais que a fidelidade à ideologia, a ideias pré-concebidas, certamente justas e socialmente louváveis, o que importa é privilegiar o essencial para poder adaptar o acessório às necessidades do tempo e da evolução das coisas. E desde Heráclito sabemos que o mundo é feito de mudança! E nos grandes serviços públicos, da Saúde, à Educação e à Justiça, que foram marca dum tempo de civilização que deve prevalecer, é preciso distinguir o que é essencial, a realização possível do Bem Público motivando a vontade esclarecida e a esperança dos Cidadãos, mais do que desperdiçar lágrimas frescas em dores passadas como escreveu Euripides, o que acabou sempre em proteccionismo corporativo das tribos respectivas, corrosão da alma desses serviços públicos e atribulações na prossecução do Bem Público.

O que me surpreendeu nestes meses que passaram foi que não tivesse havido avaliação rigorosa, isenta sobre as limitações e carências que afectaram os grandes serviços públicos e minaram a confiança dos cidadãos na acção do Estado. Seriedade, rigor e auctoritas era o que se impunha sobre o ruído, a agitação e a espuma da política que nada tem a ver com a Polis, com maiúscula.

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Oportunamente sugeri que mudar a organização do SNS precisaria de reestruturação profunda e que não se compadeceria com simples exercício de partilha da responsabilidade política, deveria ser baseada num acordo programático transpartidário, assente em pressupostos objectivos, mudanças exequíveis, continuidade no tempo e defesa do Bem Público.

De facto, impõe-se coragem política para vencer alguns problemas que prevalecem na Saúde, nomeadamente:

i) incapacidade de assegurar acesso dos cidadãos ao SNS – cada semestre que passa agrava a realidade;

ii) mais de 1/3 dos cidadãos têm dupla ou tripla protecção de Saúde: SNS, ADSE e seguro privado de Saúde, o que devia fazer pensar os que defendem a todo o custo apenas o serviço público e tentar perceber as razões que levam os cidadãos a precaverem-se com alternativas a esse serviço;

iii) os portugueses são dos povos europeus que têm maior despesa privada em Saúde (out-of-pocket)  incluindo elevada percentagem de despesas catastróficas como foi demonstrado nos Relatórios Europeus Health at a glance e no estudo publicado recentemente divulgado pela NOVA;

iv) o modelo atractivo das USF não conseguiu colmatar as necessidades de uma Medicina de Proximidade junto dos cidadãos sem a qual não será possível modular e reduzir a procura de resposta nos serviços de Urgência hospitalar como continua a verificar-se sem aparente solução;

v) um serviço privado de Saúde que cresceu exponencialmente, de supletivo passou a competitivo com o SNS que não soube responder ao desafio, perante indiferença de governos sucessivos e um discurso antagónico, mais ideológico que pragmático

vi) aparente dificuldade em implementar política de Governação Clínica institucional que tenha por objectivo a promoção da Qualidade transversal a todo o Sistema de Saúde e, finalmente,

vii) uma Política de Recursos Humanos que motive médicos, enfermeiros, técnicos, assistentes operacionais e administrativos para um projecto renovador e sério.

Há carências múltiplas, mas se tivesse que começar por uma ponta, identificaria como prioridade uma política de intervenção sobre Cuidados Primários de Saúde, movendo os obstáculos para o acesso das populações e capacitando a organização para resolver os problemas dos cidadãos com doença, reduzindo significativamente a necessidade de procurar a urgência hospitalar como refúgio e porta de entrada no SNS. E na resposta hospitalar, onde as medidas adoptadas induziram boa resposta na redução das listas de espera cirúrgicas, oncológicas e outras, e a grande Emergência Médica funciona com bons resultados, seria fundamental perceber se a eficácia e os custos das actuações desenvolvidas serão competitivos nas ofertas de resposta nos sectores público, privado e social.

A opção assumida pelos modelos excessivamente centralizadores, dirigistas e unificadores, típicos de organização excessivamente burocrática e igualitária, como são as propostas de ULS’s para o SNS, com o risco adicional de apelar a uma amálgama de culturas operacionais naturalmente diversas e de necessidades bem diferentes, e, desse modo, aumentar significativamente a entropia da acção e com isso comprometer a eficácia e mudança necessárias. Costumam ter um fim: satisfação corporativa das tribos respectivas, mais que resposta às necessidades dos Cidadãos. É como se quisesse construir uma casa pelo telhado, deixando os alicerces para o que desse e viesse!

Daí o meu repto: crer no que se vê, mais que insistir em ver aquilo em que se acredita e … não desperdiçar lágrimas frescas em dores passadas! Os tempos vão ser difíceis e as oportunidades cada vez menores.