É provável que uma criança que tenha uma educação religiosa mais intensa cresça com medo do mundo. Eu, que venho de um contexto assim, sei o que isso é: o mundo é na linguagem bíblica o lugar onde perdemos a alma. A célebre dicotomia que Jesus usa é mesmo essa: ou se perde a alma para ganhar o mundo, ou se perde o mundo para ganhar a alma. Cresci, portanto, a ter medo do mundo.
É claro que a Bíblia não usa só a linguagem dessa dicotomia entre mundo e a alma. Há espaço nela para também podermos olhar para o mundo como a criação de Deus que, mesmo tão estragadinha por nós, mostra o talento divino do seu fabrico original. Ainda assim, interessa-me agora a primeira ideia, a mais negativa, em que o mundo metia medo. Nem que seja porque sinto que me fez bem crescer com medo do mundo.
Quem tem o infortúnio de receber uma educação fundamentalmente positiva em que o mundo não mete medo, não está preparado para a esperteza dele. Pessoas que nunca tiveram medo do mundo mais facilmente são feitas gato sapato às mãos dele. E pode até acontecer a desgraça extra de quando o mundo nos trata mal procurarmos nele o lugar de refúgio, o que faz pouco sentido. Quando confiamos no mundo para nos salvar dele somos os piores doentes do síndrome de Estocolmo — amamos quem nos maltrata.
A pessoa que tem medo do mundo tem de arranjar refúgio fora dele. Não é fácil, reconheço. Mas também é assim que a fé é um indisfarçável desprezo do mundo e a busca por um lugar alternativo. As pessoas com fé inevitavelmente serão pessoas em fuga do mundo real. Fugir do mundo real tem uma conotação muito negativa para quem se sente bem tratado por ele mas não custa muito aos outros. Fugir do mundo real é um modo de vida praticado arcaicamente e cheio de futuro.
E chega um momento paradoxal: quanto mais medo se tem do mundo, mais de frente se deve olhar para ele. São os inimigos aqueles que temos de encarar ainda mais do que os amigos. Os amigos vivem geralmente ao nosso lado. Os inimigos devem ser olhados de frente. Claro que o medo pode levar-nos a evitar encarar seja quem for que nos confronta. Mas idealmente o medo deve oferecer a ocasião da sua superação, materializada numa atitude de coragem.
Faço por encarar o mundo até porque fui educado a temê-lo. Seria absurdo promover-me como campeão quando os meus instintos são na maioria das vezes francamente cobardes. Conheço as inúmeras vantagens de me diluir na multidão que é a operação mais acessível de nos passarmos por amigos do mundo (o mundo é um narcisista que adora a ideia de ter toda a gente a amá-lo). Mas este mundo, lá está, não é de confiança e não estou para aturá-lo, por muito medricas que eu seja.
Que futuro tem o medo do mundo? O de preferir outro. A minha educação religiosa também me encaminhou nessa esperança: ter medo deste mundo deve levar-nos a encará-lo e vencê-lo para que outro seja possível. Como se faz isso na prática? Para vencer este mundo morre-se para ele. Se houver alguém que já o tenha conseguido, há uma probabilidade crescente de que nessa estranha operação um novo mundo nos esteja a ser preparado. Desse não tenho medo nenhum.