Onde não há lei, não há liberdade”, John Locke

O debate em torno da natureza humana é uma pedra angular da filosofia política ocidental. Rousseau e Hobbes, nas suas visões contrastantes, foram instrumentais na formação do pensamento moderno sobre o Estado, a sociedade e o comportamento individual. As suas ideias, embora divergentes, foram centrais nas discussões sobre as origens da sociedade e o papel da governação.

Com uma visão mais “pessimista”, Hobbes argumentou, no seu Leviatã, que num estado de natureza (ou seja, sem qualquer autoridade governante), as pessoas serão essencialmente egoístas, brutas e movidas apenas pelo desejo de auto-preservação. Nesse estado, a vida seria “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. Para Hobbes, a paz e a ordem só existirão se e na medida em que as pessoas estejam disponíveis para renunciar a certas liberdades e a submeter-se à autoridade de um poder soberano. O Leviatã, seja na forma de um monarca ou de qualquer outra autoridade, manterá eventualmente a paz e a ordem, protegendo os indivíduos do caos do estado de natureza. Contrariamente a Hobbes, Rousseau defendeu que as pessoas, no seu estado natural, seriam essencialmente boas, pacíficas e viveriam em harmonia. Rosseau cunhou o termo “bom selvagem” para descrever essa bondade inerente da humanidade no seu estado puro. Argumentou ainda que, à medida que as sociedades se desenvolvem e se tornam mais complexas, introduzem desigualdades, propriedade e competição, fatores que corrompem a bondade inerente dos bons selvagens. Assim, muitos dos problemas da sociedade não serão resultado da natureza humana mas das estruturas sociais em si. Daí que Rousseau tenha defendido que os governos mais não são do que compromissos entre os que integram uma dada comunidade, onde as pessoas se entendem para formar um contrato social, não por medo, como Hobbes sugeriu, mas para proteger a “vontade geral” coletiva do povo. A verdadeira autoridade, segundo Rousseau, residirá na vontade coletiva dos cidadãos.

A modernidade, especialmente a partir do Iluminismo, sem resolver ou clarificar se os homens nascem bons, sendo depois corrompidos pelas estruturas sociais, ou nascem maus, sendo depois moldados pela vida em comunidade, introduziu uma série de conceitos políticos que reformularam a compreensão sobre a governação, os direitos individuais e a organização societal. A Revolução Francesa (1789-1799) destaca-se por ser o momento mais emblemático desta transformação, sublinhando a transição de formas tradicionais de governação baseadas na monarquia hereditária e no direito divino para aquelas fundamentadas nos princípios da liberdade, igualdade e legalidade.

É a partir da modernidade que nasce a concepção de Estado de Direito que sobrevive até hoje, que tornou consensual em largas zonas do planeta que todo o indivíduo, independentemente do seu estatuto ou posição, deverá estar sujeito à lei, de forma uniforme. É a modernidade que traz a separação de poderes e distribui as funções governamentais entre o legislativo, executivo e judiciário, assente num sistema de freios e contrapesos, que visam evitar o abuso de poder e proteger os direitos individuais. A modernidade trouxe também o laicismo e a ideia de que o Estado deverá permanecer neutro em questões religiosas. É, finalmente, com a modernidade que se consolidam as liberdades civis e os direitos fundamentais, que afirmam que todo o indivíduo possui direitos inerentes que não podem ser infringidos pelo Estado ou pelas estruturas sociais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A governação moderna superou os debates sobre a natureza humana (como visto na dicotomia Rousseau-Hobbes), para não depender unicamente da boa vontade ou benevolência dos indivíduos. Em vez disso, o Estado Moderno está estruturado em torno de princípios e instituições projetadas para garantir a justiça, a equidade, a liberdade, o pluralismo, e os direitos individuais. Uma mudança em direção a uma governação sem inspiração divina ou teocrática implica que a proteção dos indivíduos e dos seus direitos não fica ao sabor dos impulsos humanos, mas está ancorada em leis codificadas e direitos fundamentais que são defendidos por instituições, independentemente das visões sempre em evolução sobre a natureza humana.

Ora, milhões de mortos depois, em pleno século XXI, continuamos a assistir a tensões relevantes entre as sociedades contemporâneas, moldadas pelos princípios da modernidade, e as que, paradoxalmente, continuam a alimentar visões pré-modernas, teocráticas e inimigas das liberdades mais básicas. Um dos expoentes máximos dessa tensão é fomentada pelo sucesso de grupos terroristas que defendem ideologias ancoradas na violência. Tais grupos tentam legitimar as suas ações em filosofias que resultam da combinação de interpretações históricas, culturais e, por vezes, religiosas muitas vezes artificiais e deturpadas e que desalinham das normas globais contemporâneas. As ideologias terroristas promovem sistemas hierárquicos de base totalitária, têm como objetivo suprimir certos grupos e defendem a violência como meio legítimo para atingir os seus objetivos. O terrorismo, porém, não é apenas uma tática, mas uma estratégia deliberada para induzir medo, desestabilizar sociedades pacíficas e desafiar a modernidade e as conquistas do Estado de Direito. Atacando de forma selvática civis e o direito humano mais básico – o direito à vida –, estes grupos exibem com clareza o seu desprezo pelos valores acarinhados nas democracias modernas e nas sociedades mais evoluídas. Não é à toa que os grandes movimentos terroristas têm inspiração religiosa ou separatista, mas sempre com fortes pontes com ideologias de extrema-esquerda com quem apenas têm em comum a recusa do modelo de sociedade em que hoje vivem as democracias liberais.

Responder ao terrorismo é um desafio multifacetado. Uma resposta militar ou securitária, embora por vezes necessária, não é suficiente. Num conflito que é, sobretudo, civilizacional, é fundamental que não nos deixemos capturar pela lógica de barricada das represálias indiscriminadas ou da restrição das liberdades civis dos que estão sob a alçada dos terroristas, e que mais não são do que os instrumentos do seu fanatismo. Conflitos com grupos enraizados na violência e com conceções pré-modernas dos direitos individuais testam a resiliência dos sistemas democráticos modernos.

É por isso que nesta altura não podemos deixar de traçar uma linha entre Israel e o mundo de eventuais “bons selvagens” que protege os terroristas do Hamas. Israel, desde a sua fundação, soube evoluir para se tornar no que é hoje: uma sociedade moderna, plural, laica, e defensora das liberdades individuais e dos direitos fundamentais. Seguramente que há na democracia israelita inúmeras falhas, que devemos sempre sinalizar, mas o que é certo é que, nas suas fragilidades, Israel vive sob o império da lei, num quadro de uma sociedade plural e vinculada na defesa dos direitos individuais, lutando contra grupos que jogam segundo as conceções e as regras da pré-modernidade. Israel deve merecer o nosso apoio, não de barricada, mas um apoio exigente, pois é na recusa do Hamas e de tudo o que ele simboliza e esconde, e na afirmação dos Estados de Direito modernos, livres e plurais, que está a única – e difícil – solução para um conflito que já não tem, hoje, os fundamentos de 14 de maio de 1948. As últimas semanas mostraram-nos, porém, de forma brutal, que há largas zonas do Planeta que ainda recusam a modernidade. Há, por isso, um conflito que não é apenas militar, que não se limita geograficamente às fronteiras de Gaza, às montanhas do Líbano, ao Mar Morto ou ao rio Jordão, mas civilizacional, do qual não deveríamos prescindir, por comodismo ou medo, sob risco de voltarmos a viver um tempo em que as ideias de Rosseau e Hobbes se tornem de novo relevantes.