Há três coisas essenciais que é preciso saber se quisermos formular hipóteses, neste nosso cantinho lusitano, acerca do que irá sair do braço de ferro entre o Reino Unido e a União Europeia (UE). A primeira dessas coisas é tão óbvia e tão antiga que tem sido sistematicamente esquecida pela esmagadora maioria dos comentadores europeus ou não. Precedida desde 1950 pelo Plano Jean Monnet na sequência do fim da 2.ª Guerra Mundial, a primitiva Comunidade Económica Europeia (CEE, 1957), hoje com 61 anos feitos sob o novo nome de União Europeia (UE, 1993), já tinha mais de 15 anos quando a Grã-Bretanha e os seus aliados foram finalmente aceites na organização multinacional das democracias europeias, às quais se foram juntando ao todo 28 países e há mais na fila de espera.
Entretanto, entrou em circulação a moeda única em 1992 (o Euro), actualmente com 19 países aderentes, mas – primeiro sinal da sistemática suspeição britânica anti-continental – só um dos países que aderiram juntamente com a Grã-Bretanha é que adoptou o euro, a Irlanda, a qual era ainda há menos de cem anos uma colónia inglesa (1921) e é hoje em dia o país com o maior PIBpc da UE, com a excepção singular do Luxemburgo… Como é sabido, embora isso seja empurrado para debaixo do tapete, a Grã-Bretanha já se candidatara à CEE duas vezes – em 1961 e em 1967 – sendo a sua candidatura recusada pela França então presidida por De Gaulle.
Esta mútua suspeição, que já então reinava nunca desapareceu perante as ilusões da Grã-Bretanha acerca do seu próprio lugar no concerto das nações depois do fim do império britânico e, sobretudo, da aliança com a antiga colónia norte-americana. A suspeição voltou a dar sinais perante a criação da moeda única europeia, que efectivamente ousou competir com a combinação permanente entre o dólar americano e a libra esterlina, que também nunca esconderam a oposição ao «euro»!
Em suma, a relação da Grã-Bretanha com a UE foi sempre vivida do ponto de vista egoísta do seu soberanismo imperial e quem acompanhou o longo período de criação dessa extraordinária entidade política que é ainda a UE sempre o soube. Eu próprio tive oportunidade há anos de observar a forma descarada como a Inglaterra, apoiada pelos USA, angariava a adesão dos países de Leste recém-libertos da bota soviética. Numa palavra, foi uma versão mal disfarçada da táctica: «Se não podes vencê-los, junta-te a eles»… Mas em plena desordem internacional decidiu que «se não podes vencê-los, vira-lhes as costas»! Talvez o euro não se aguente! A única surpresa foi a tardia traição de Trump cujo ultra-soberanismo deixou a Inglaterra pendurada…
O segundo ponto decisivo desta narrativa é também muito simples. Se hoje a Inglaterra não consegue sair da UE não é por causa da escassa maioria dos «brexiters», de cuja miopia soberanista os filhos hão-de lamentar-se a vida toda, nem tão pouco da má vontade das autoridades europeias. É muito simplesmente porque o euro foi construído com grande dificuldade a fim de fornecer aos países-membros aquele substrato, que os estados norte-americanos possuem, a fim de conferir uma existência comum reconhecida a uma Federação Europeia, a saber, o euro, pelo qual cada estado membro é e deve ser responsável, bem como solidário, conforme sucede com os estados norte-americanos, os quais, quando vão à falência, têm de pagar por ela, como se viu com o estado de Porto Rico ou com cidades como Detroit!
Em suma, se a Inglaterra soberana e conservadora, «trabalhistas» incluídos, não consegue sair da UE é porque a União não foi feita para isso. Só foi feita para entrar. E o euro é o cimento que gruda a União ou esta não sobrevive. Neste sentido, os soberanistas de todos os feitios e tamanhos, como os que existem em Portugal, incluindo em esdrúxulas combinações entre reaccionários e revolucionários, têm de capacitar-se que o destino da UE ainda pode a vir a ser a dissolução da União e a formação de uma Federação dos países que sejam capazes de viver à altura de uma moeda única.
Um terceiro ponto não despiciendo, embora esquecido por comentadores de todas as nacionalidades, apresentem-se eles como sendo de direita ou de esquerda, incluindo mais uma vez em Portugal, é uma indisfarçável aversão sócio-cultural às potências continentais, nomeadamente à França e à Alemanha. Isso vem do despique histórico entre conservadores e radicais perante o colonialismo e o imperialismo dos quais Portugal não deixa de ter saudades: basta ver a forma como aqui ainda se alimentam verbalmente relações paternalistas com o Brasil e com as antigas colónias africanas. A simpatia por um sistema político ultra-conservador como o Inglês, incapaz de assumir um mínimo de proporcionalidade eleitoral, tem efeitos ideológicos que levam muitos a antipatizar com aquilo que consideram ser uma espécie de doutrina da moeda única, a qual mais não é do que o único cimento viável para um regime federal europeu nesta altura do processo.