Na esplanada junto ao mar, Paulo acabara de pedir um fino enquanto aguardava por João, o seu amigo de infância. Paulo é sócio-gerente de uma pequena empresa, e João é funcionário de topo da Autoridade Tributária. Lá vinha ele: impante, passo enérgico e sorriso aberto.
– Viva, Paulinho. Hoje estamos mais ricos, já viste?
– Como assim? – inquiriu Paulo confuso.
– Já vi que ainda não reparaste que nos baixaram os impostos.
– Ah, isso. Sim, já tinha reparado que ME baixaram os impostos. No teu caso é diferente porque tu NÃO pagas impostos. Tu és um recebedor de impostos.
João arregalou os olhos, e a sua voz, geralmente melíflua, engrossou sobremaneira com a irritação. Seguiu-se uma troca de argumentos ininteligível, durante os quais Paulo tentou fazer valer o seu ponto de vista. Sem sucesso, pois o tema em causa convidada à reflexão, e João estava mais interessado em ganhar a discussão fazendo barulho do que descobrindo a verdade através da contra-argumentação. Já cansado, Paulo acabou por mudar de assunto sem que antes advertisse o amigo: “João, quando tiver tempo escrevo-te a explicar os meus pontos de vista. Será mais fácil para mim e seguramente também sê-lo-á para ti.”
–
Caro João,
O ponto de vista segundo o qual tu não pagas impostos pode ser explicado a partir de vários ângulos, sendo que não estou seguro de esgotar neste texto todos eles. Há uma clarificação prévia a fazer: o que são impostos? Não quero aprofundar as divergências sobre a definição filosófica de impostos (para uns, os impostos são o preço da civilização, o que lhes dá um estatuto tendencialmente benigno; para outros, os impostos são um roubo organizado, o que lhes dá um estatuto tendencialmente totalitário; por último, algures no meio haverá variadas matizes). Entendamo-nos então sobre uma definição consensual para que possamos avançar: os impostos são o tributo que o estado retira do resto da economia tendo em vista a prossecução das suas funções.
Chegamos então à primeira linha de argumentação, se as atividades do estado se financiam essencialmente com impostos, há dois tipos de pessoas: as que pagam impostos ao estado e as que recebem esses impostos do Estado. É bom de ver que é impossível seres funcionário da AT e pagares impostos. Seria equivalente a seres homem e mulher ao mesmo tempo. É uma impossibilidade, meu caro. Eu e tantos outros pagamos impostos para que, com esse dinheiro, tu e muitos como tu desempenhem um conjunto de funções em nome do “bem comum”. Imagino que estejas um pouco ofendido com a crueza do meu argumento. Não estejas, meu caro. Em lado nenhum eu disse que a tua função não é necessária. Pelo contrário, o cobrador de impostos é uma instituição milenar, que existia mesmo quando a máquina do governo ou o poder do rei eram ainda muito incipientes para efeitos fiscais. Para além disso, é uma questão de lógica: se assumimos que é preciso tratar do bem comum, por pequeno que seja, é difícil fazê-lo sem algum grau de ameaça e coerção. Portanto, o papel do cobrador de impostos é essencial, tu és essencial.
Antes de avançar para o segundo argumento, imagino que te tenhas ofendido com o facto de eu associar a tua atividade à ameaça e coerção. Tens razão, embora seja a mais pura das verdades, entusiasmei-me um pouco. Escrevo de outra forma: querendo permanecer neste território, eu tenho alguma escolha legal a não ser pagar os impostos que um determinado governo me impõe? Não tenho, está visto que não tenho. Portanto, estamos mesmo a falar de impostos (imposição) e de pagadores de impostos e não de contribuição (voluntária) e contribuintes.
Sigamos uma segunda linha de argumentação um pouco mais técnica (matemática, como gostas de dizer). Imagina que (sei que é improvável, mas serve para efeitos de demonstração) o governo determinava que em 2025 todo o aumento do salário base de todos os cidadãos seria engolido por uma “contribuição extraordinária” por forma a manter o salário líquido de 2024.
Vejamos este argumento através de um exemplo muito simplificado: imagina que, hoje, ambos temos o mesmo salário base de 3.000 euros e que esse salário base resulta num salário líquido de 2.300 euros em ambos os casos. A seguir, pressuponhamos que o salário base passaria para 4.000 euros em 2025 em ambos os casos. Todavia, por via de uma contribuição extraordinária, ambos manteríamos o salário líquido de 2024 em 2.300 euros. A linha “contribuição extraordinária” apareceria bem explícita nos recibos de vencimento e seria de 1.000 euros em ambos os casos.
No teu caso, o suposto aumento de impostos teria impacto zero em termos de receita fiscal líquida do estado. Quem te aumentou e te retirou o aumento foi a mesma entidade (o estado). Essa entidade não ficou com nenhum euro a mais nem a menos na sua conta bancária, e tu também não.
No meu caso seria diferente, o meu aumento salarial deixar-me-ia igual a 2024 (porque o imposto extraordinário limparia a totalidade do aumento), mas alguém ganharia e alguém perderia: o estado ganharia 1000 euros, mas a empresa que me paga perderia 1000 euros. Note-se que uma empresa, assim como o estado, é só uma forma diferente de dizer “agrupamento de pessoas”. Retirar-lhe dinheiro é retirar dinheiro a essas pessoas, designadamente: retirando-lhes parte da capacidade de autofinanciamento, investimento e inovação; retirando-lhes parte da capacidade de remunerar adequadamente o aumento da produtividade do trabalho; retirando-lhes parte da capacidade de remunerar o capital. Em suma, diminui-lhes a capacidade de apresentar no mercado um produto atual a preços competitivos.
Parece-me que, interiorizando isto, a retenção de IRS que exibes na tua folha de vencimento não passa de um artifício, uma forma do Estado nos querer convencer de que todos pagamos impostos, mesmo que a verdade seja que uns pagam e outros recebem. É um truque, meu caro. Eu pago impostos, tu recebes impostos.
Não querendo recorrer a citações, não resisto a esta da saudosa Margaret Thatcher: «Não nos esqueçamos nunca desta verdade fundamental. O Estado não tem outra fonte de dinheiro além do dinheiro que as pessoas ganham por si mesmas. Não existe dinheiro público. Existe apenas o dinheiro dos pagadores de impostos (taxpayers).»
Poderás ter a tentação de concordar replicando: “Mas eu não sou o Estado? O Estado é uma entidade abstracta que, de facto, se alimenta de impostos, mas eu não sou o Estado, mas sim um indivíduo.”
Bem, se pensares um pouco verás que o argumento é um pouco estranho. É autoevidente que o Estado, assim como as empresas, é feito de pessoas. Portanto, se o conjunto do Estado vive de impostos, é evidente que são as pessoas que trabalham no Estado que, em primeira instância, recebem esses impostos. Afirmar que sim para umas e não para outras é um exercício estranho. Pode, de facto, acontecer que haja injustiça interna dentro do Estado, tal como há nas empresas, mas isso não invalida o argumento central.
Há dois aspectos adicionais a reter que não queria deixar de aflorar: os efeitos indirectos e os tipos de servidores públicos.
No que diz respeito aos efeitos indirectos, temos de recuar ao conceito de pagadores/recebedores de impostos. Se há pagadores de impostos, terá de haver recebedores de impostos.
Vejamos:
a) Como recebedores de impostos estão os funcionários públicos em geral, em sentido duplo: porque recebem o salário oriundo dos impostos pagos pelos pagadores de impostos e porque usufruem de serviços públicos grátis. Também poderão estar alguns pagadores de impostos de primeira ordem, que acabem por ser recebedores líquidos de impostos, pois os impostos que pagam são inferiores ao valor dos serviços públicos que usufruem gratuitamente.
b) Já como pagadores de impostos temos aqueles que, não sendo servidores públicos, pagam um montante de impostos superior ao valor dos serviços públicos usufruídos. Podemos e devemos também contabilizar nestes efeitos indirectos as empresas formalmente privadas que são recebedoras do orçamento de Estado, logo recebedoras de impostos. Numa economia como a nossa, em que o peso do Estado é enorme, torna-se difícil contabilizar com alguma exatidão todos os efeitos de segunda ordem e seguintes, mas isso não significa que não existam.
No que diz respeito aos tipos de servidores públicos, temos de distinguir atividades que de alguma forma estão expostas a concorrência no mercado, como por exemplo as atividades de professores e médicos, de outras atividades que só existem porque o Estado existe (são monopólios). No caso de atividades expostas à concorrência, o artifício de pagar impostos na folha de vencimentos é de alguma forma mais compreensível porque existe uma alternativa de mercado comparável e poderá haver alguma liberdade de circulação entre setor público e privado. Já no caso de atividades que só existem porque o Estado existe, como é o caso do Governo, Assembleia da República e toda a burocracia inerente ao aparelho de Estado, havendo um monopólio legal para exercer essas atividades, alegar que os servidores públicos que as exercem pagam impostos em vez de reconhecer que são recebedores de impostos é uma falácia.
A carta já vai longa e eu não quero abusar da tua paciência. Em prejuízo de mais linhas de argumentação no mesmo sentido e de alguns detalhes e exemplos adicionais, avanço para a lição que podemos retirar disto. Para que serve esta carta, afinal?
A lição central que perpassa pela carta é que os cidadãos, embora iguais perante a lei, não estão todos no mesmo plano. A sociedade está organizada para que determinadas funções em nome do bem comum sejam realizadas pelo Estado em sentido lato, e que a forma de as financiar seja exigida coercivamente ao resto da sociedade através de impostos vários. Por sua vez, a outra parte da sociedade está organizada para providenciar bens e serviços de que os consumidores precisam, sendo que há uma multiplicidade de gostos individuais a satisfazer. Esta parte da sociedade (a do mercado) é financiada de uma forma radicalmente diferente do Estado: a produção, as trocas e o financiamento são basicamente processos voluntários coordenados pelo mecanismo dos preços. Apesar da interferência do Estado nestes processos, podemos afirmar (ainda) que a essência desta parte da sociedade se baseia na cooperação, negociação e nas trocas voluntárias, ou dito de outra forma mais académica, na ordem espontânea.
Outra lição importante está relacionada com a questão do bem comum. Ao longo da carta, essa expressão foi assumida como um dado indiscutível. Na verdade, não é bem assim, pelo menos no que diz respeito ao seu perímetro. Sem dúvida que existe o bem comum, sobre isso não me restam dúvidas. O ponto é que também existe uma tendência inelutável para chamar bem comum às efabulações ou empolamentos intencionais ou a situações de preferências individuais em que seria desejável uma solução de mercado.
A consequência lógica desta tendência de intrusão não se limita à cobrança de impostos acima das capacidades dos cidadãos que operam no mercado, ela estende-se ao crescimento da veia estatal persecutória, tendo como alvos as escolhas, o modo de vida, as opiniões e, no fundo, a identidade das pessoas.
Devido a estas lições, este assunto aparentemente miudinho acaba por se revelar importante. Porque não podemos deixar-nos enganar por truques de linguagem ou artifícios de má matemática, digo-te mais uma vez: tu não pagas impostos!
De um amigo que te quer bem.
Paulo
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.