Anita acordou radiante naquela manhã primaveril. Após anos de sacrifícios, finalmente já conseguia ver uma luz ao fundo do túnel. Visivelmente bem-disposta e especialmente bonita nesse dia, entrou confiante no prédio onde o seu irmão João trabalhava numa pequena empresa de consultoria financeira e fiscal. Anita é uma consultora especializada em marketing e publicidade. “Muito criativa e competente.” – dizem os seus pares. Todavia, apesar das centenas de apresentações durante os últimos anos, o seu negócio unipessoal, a que ela carinhosamente chamava Anita SA, tardava em descolar. Até que aconteceu o bendito mês de Abril de 2022, em que uma enxurrada de respostas positivas lhe tinham mudado as perspetivas de vida. Depois de anos a fio de avanços e recuos e do penoso recurso às poupanças da família e amigos, Anita sentia-se finalmente recompensada. Os sacrifícios tinham valido a pena! Havia muito trabalho pela frente. Nada que a desmotivasse, bem pelo contrário.

A soma dos valores dos contratos em causa era significativa, pelo menos à escala de Anita: cem mil euros anuais, a maioria por prazos superiores a 2 anos, renováveis por iguais períodos e todos com uma cláusula indemnizatória caso não houvesse renovação (o seu irmão tinha-a ajudado nos pormenores da negociação). Anita era um talento puro, uma força da natureza, pelo que os valores eram mais do que ajustados. Para além disso, esta mudança permitir-lhe-ia contratar uma pessoa (talvez mais se o negócio crescesse) inspirada no seu talento e modo de trabalho. No fundo, tratava-se de dar vida real à ficção da Anita SA. Em termos financeiros, o valor anual era muito mais do que ela precisava. Solteira, 30 anos, ainda sem filhos, Anita fazia contas por alto e recordava os seus projectos de vida. Todavia, contas não eram o seu forte, infelizmente.

Com estes 100.000 mil euros por ano, estou muito acima dos meus gastos anuais (cerca de 25.000). Posso devolver o dinheiro emprestado (30.000 euros), aumentar um pouco os meus gastos pessoais para 30.000 (também mereço) e ainda assim me sobram 40.000 euros no primeiro ano. No segundo ano sobrarão 70.000. Posso contratar pessoas, investir, crescer. Com uma empresa minha, poderei gerir melhor o meu tempo, ser mais produtiva, para que o trabalho não caia todo em cima de mim. A natureza não perdoa. Se quero ter filhos e dedicar-lhes tempo, provavelmente terei que dar tudo agora para depois poder gerir melhor o sucesso.

Estas reflexões foram interrompidas pelo aviso de que o seu irmão João já a podia receber. Sem mais delongas descreveu-lhe sofregamente o seu plano.

– O que te parece? – atirou Anita já sem fôlego.

– Estás com tempo? – respondeu João recostando-se na cadeira e franzindo o sobrolho com ar preocupado.

– Todo o tempo, tirei o dia.

– Muito bem. Então comecemos pelo IVA. Estes 100.000 euros anuais incluem IVA. A tua atividade liquida IVA à taxa de 23%. É certo que podes deduzir o IVA de alguns custos que tiveres (por exemplo comunicações e serviços), mas não é expressivo. Os 100.000 na prática são 81.301 euros líquidos, pois tens de entregar 18.699 ao estado.

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– Tanto? Não fazia ideia.

– Espera, ainda estamos no início. Se quiseres criar uma empresa e contratar pessoas terás de ter em linha de conta os custos dessa contratação. Quanto achas que vai pedir um criativo para trabalhar na tua empresa?

– A pessoa que tenho em vista pede 25 mil euros por ano.

– Nesse caso, o custo é aproximadamente o dobro porque sobre o salário base incide uma contribuição obrigatória da empresa para a segurança social (23.75%). Por sua vez, o trabalhador também tem que fazer um pagamento de 11% para a Segurança social, para além do IRS. Contas feitas, dependendo da situação do trabalhador (se é casado, tem filhos, etc) aquilo que receberá é aproximadamente metade do que custa à empresa. No teu caso, seria cerca de 50.000 euros por trabalhador.

– Isso é absurdo! Só podes estar a brincar.

– Infelizmente não estou. Se considerarmos dois salários semelhantes (o teu e o de um funcionário) e assumindo que terás alguns custos de estrutura, a empresa vai acabar por dar prejuízo.

Anita sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Como era aquilo possível? Sabia vagamente o que eram impostos, mas nunca se tinha visto na contingência de os pagar diretamente ou de decidir com base neles.

– Quer dizer que com os 100.000 euros que receberei dos meus clientes não conseguirei ter o suficiente para cumprir o meu sonho? Com esses custos é impossível!

– É verdade, Anita. E não termina aqui. Se pegares no teu rendimento antes de impostos (que é 100.000 euros), desde IVA sobre o serviço, IRS, Segurança Social, Impostos sobre os lucros, imposto sobre os dividendos, IVA sobre o consumo, IRS sobre os rendimentos de poupança, já para não falar de IMI e taxas várias, verificarás que do valor gerado entregas ao estado muito mais do que ganhaste – dito isto, João fez um compasso de espera e mostrou um quadro à irmã atordoada.

Anita estava em estado de choque. Pela primeira vez sentia o longo braço do fisco, ameaçador, sufocante, omnipresente. Ao fundo, na TV, falava o secretário de estado dos assuntos fiscais. João aumentou o volume do som: “…A redução do Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP) equivalente à redução do IVA para 13% terá um custo de cerca de 80 milhões de euros por mês em perda de receita fiscal.

– Curioso! – vociferou Anita. Ele fala como se estivesse a gerir uma empresa ou o orçamento familiar quando a verdade é que a única fonte de rendimento que tem é aquilo que impõe às empresas e famílias!

João assentiu sorrindo.

– Percebeste agora quando te disse no outro dia que os funcionários públicos não pagam impostos? Competentes ou não, executando tarefas úteis ou não, os seus rendimentos provêm de impostos. São recebedores, não são pagadores. É indiferente tu, por intermédio do governo, pagar-lhes 120 e deduzir 20 ou pagar-lhes diretamente 100. A origem do dinheiro é sempre a mesma: é o teu dinheiro. E mesmo os chamados impostos indiretos ligados ao consumo não deixam de ser uma devolução de impostos recebidos pelos funcionários públicos.

– Mas eles trabalham.

– Sim, muitos trabalham e bem, não ponho isso em causa. Contudo, nenhum deles está exposto aos riscos que tu estás, designadamente o risco de desemprego e do capital investido. Não têm incentivos para se mexer, logo não se mexem. É a natureza humana. Repara a quantidade de serviços públicos ainda encerrados ou a funcionar indecentemente mal porque o pessoal está em casa em “teletrabalho”. As medidas a propósito da COVID19 só reforçaram esta ideia: em geral, os ditos servidores públicos não precisam satisfazer o cliente porque o cliente está sempre lá para lhes pagar o salário. Eles não perderam absolutamente nada com a crise. Muitos deles foram para casa em suposto “teletrabalho” e continuaram a receber. E tu a pagares, está claro.

– Estás a exagerar. E se é assim como dizes porque não se muda o governo?

Ora aí está um bom ponto. Porque o sufrágio universal inclui os recebedores de impostos. Estes votam em quem lhes mantiver ao aumentar as regalias ou, em muitos casos, as migalhas. Pelo meio pairam os espertos engravatados, que entendem que iniciativa privada e liberdade económica é ter o telefone do ministro ou do presidente da Câmara. São os empresários amigos. Este país está a saque, Anita.

Anita afastou-se em direção à janela. O céu azul tinha enegrecido ameaçando chuva; pelas frinchas do postigo assobiava um vento gélido. Arrepiada, esmagada, mas ainda não derrotada, virou-se para o irmão.

– Posso fumar um cigarro?

– Claro, Anita – disse João enquanto acendia um fósforo e o estendia à irmã.

– Humm, sabe mal!

– Pois sabe. 80% dessa droga são impostos!