Para corromper um indivíduo basta chamar direitos aos seus anseios e abusos aos direitos dos demais.” (Nicolás Gomez Dávila)

12 de Novembro de 2023, último debate para as eleições presidenciais na Argentina, frente a frente estavam os dois candidatos que tinham passado à 2ª volta. De um lado, Sergio Massa, figura impecável, elegante, fato azul-escuro, gravata a condizer com um nó imaculado, pin alvi-celeste cuidadosamente incrustado na lapela, postura firme, serena e afável. Se nos desligássemos do sentido das palavras ditas, vislumbraríamos tranquilidade, segurança e bom senso. Em suma, fiabilidade.

Do outro lado estava Javier Milei e o seu inacreditável penteado (neste caso, despenteado). A similitude era óbvia com Trump, que também tem um penteado estranho, e até com Hitler. O nosso software mental na versão “pensar depressa” diz-nos que deve haver uma ligação: este Milei é provavelmente como os outros! Ademais, tal como os outros dois, também ele tem olhos azuis e um ar alucinado. É também um incontinente verbal que, fora do âmbito político, tem no seu currículo umas quantas bizarrias. Em suma, um louco.

E no entanto…

Sergio Massa é o mais recente representante das políticas que, eleição após eleição, levaram a Argentina à ruína. Tranquilo, ele argumenta, como se desta vez pudesse ser diferente, que é nele e na mão protectora do estado que os argentinos devem confiar, convocando todos para uma “remontada” em nome da pátria, de um mundo melhor e mais inclusivo, que combata todas as desigualdades e as alterações climáticas, promova a justiça social e o bem comum em geral. Quase verti uma lágrima de emoção com o “don`t cry for me Argentina” em loop no meu subconsciente.

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Curiosamente, Massa ocupou parte do seu tempo no debate a fazer perguntas a Milei. O intuito era evidente. Ao apertar com “o louco”, as respostas deste acabariam por penalizá-lo. Parecia bem visto, mas foi um falhanço retundo. Milei respondeu a todas as questões, inclusive com detalhes que podia e deveria ter evitado. O penteado de Milei pode não estar em ordem, mas as ideias estão.

Javier Milei é, na sua autodefinição, um liberal libertário. A necessidade de apor o termo libertário ao termo liberal exige uma clarificação, que decorre da confusão em volta do termo “liberalismo” consoante as diferentes geografias e contextos políticos. A origem etimológica de “Liberal” vem do latim “Liber”, que significa Livre. Se ser livre é ter liberdade, então o que é a liberdade? Para os liberais clássicos, a raiz do conceito é a ausência de coerção sobre os indivíduos e sobre os seus direitos naturais: direito à vida, à liberdade e à propriedade. No entanto, o termo foi capturado pelas ideologias social-progressistas que entendem a liberdade como a libertação do indivíduo pelo estado. Assim, por exemplo nos EUA, os liberals são aqueles que defendem esta segunda versão de liberdade, a tal corrupção a que aludia na citação que inicia este artigo. Por cá, o exemplo mais recente pode ser encontrado no último artigo de Rui Tavares no Público, fazendo uso do truque mais velho do mundo em política: a demagogia. “A liberdade de Milei não tem nada a ver com a libertação da fome, da pobreza, da dominação e da ignorância que constitui desde a Antiguidade o cerne mais profundo da ideia e da filosofia da liberdade.

Se é verdade que as esquerdas americana e europeia se apropriaram do termo “liberal”, não é menos verdade que o termo “libertarian”, outrora usado por anarquistas de esquerda, foi cooptado pelo campo dos velhos liberais clássicos americanos, e depois reinventado por figuras como Murray Rothbard, o pai espiritual desta escola de pensamento. E foi desta forma que, apesar de algumas dissensões importantes quer no campo económico quer no campo da filosofia política, o encontro entre as ideias do liberalismo clássico e do libertarianismo não é uma mera coincidência.

Coincidência terá sido o facto de este terramoto político se ter dado na Argentina. Em 1959, o liberal clássico Ludwig Von Mises, economista da escola austríaca, visitou este país para ministrar um conjunto de palestras que passaram depois a livro: As Seis Lições – o capitalismo, o socialismo, o intervencionismo, a inflação, o investimento estrangeiro e a política e ideias. O sucesso editorial não foi acompanhado pelo sucesso económico da Argentina, que continuou paulatinamente a destruir a sua economia com políticas exatamente inversas às preconizadas por Mises, aqui resumidas pelo Professor Ubiratran Iorio: “Mostra Mises que a melhor política económica é aquela que limita o governo a criar as condições que permitem aos indivíduos perseguirem seus próprios objetivos e viverem em paz e que a obrigação do governo é simplesmente proteger a vida e a propriedade para permitir que as pessoas desfrutem da liberdade e da oportunidade de cooperar e de efetuar trocas entre si. Assim, o governo deve criar o ambiente que permita que o capitalismo possa florescer.

Eis o testemunho Miseano que, mais de 60 anos depois, está nas mãos de Javier Milei. Ao rever grande parte das suas entrevistas percebe-se que tem a lição bem estudada, pelo que nenhum liberal clássico ou libertário deveria estar incomodado, bem pelo contrário. A preocupação é, aliás, exatamente inversa: conseguirá fazer tudo o que promete? Provavelmente e infelizmente, não.

E o que deveria fazer Milei?

Antes de mais, eis o legado peronista de forma resumida: déficit orçamental de cerca de 5% do PIB; dívida pública gigantesca; risco país de 24 pontos percentuais; 40% de pobres.

Perante este cenário sombrio quase apocalíptico provocado pelo socialismo argentino, não pode haver meias medidas. A Argentina terá de ter imediatamente um deficit zero ou mesmo um superavit orçamental. Se o estado recebe 100 de impostos não pode gastar mais de 100. Segundo alguns analistas, a despesa pública política é cerca de 25%, pelo que, a fazer fé nestes números, o corte de despesas poderá ser exequível em pouco tempo sem grande impacto nas despesas sociais. Estancado a desvario da despesa, a emissão monetária deixa de ser tão necessária e a inflação é controlada, assim como é restaurada a confiança dos vários agentes económicos. Seguem-se cortes de impostos, abertura da economia, privatizações, desregulamentação e, por último, o fim do Banco Central e da moeda própria, passo polémico embora coerente com a vontade de cortar pela raiz a plutocracia fiscal e monetária que corrói a Argentina.

Claro que, em Portugal, a direita dita moderada e civilizada está a sinalizar suposta virtude traçando linhas vermelhas com este novo desafio ao seu posicionamento. Esta é a mesma direita que fez coro com o PS nos atropelos aos direitos dos cidadãos durante a Covid-19 e que quer dar mais uma estocada nesses direitos numa revisão constitucional; é a mesma direita que dança a música apocalíptica dos fanáticos do clima, sem sequer ousar levantar a discussão sobre estratégias alternativas mais lúcidas e menos empobrecedoras; ou, no caso da direita “liberal”, esta é a direita que subscreve toda a agenda social do bloco de esquerda, uma agenda de libertação do indivíduo das amarras da sua história, das suas raízes familiares e da sua natureza e que vergonhosa e cobardemente evita posicionar-se sobre o fenómeno Milei ou se refugia em epítetos difamatórios, os quais só servem para ilustrar publicamente a sua néscia preguiça intelectual e o seu oportunismo táctico.

Dessas direitas não teremos surpresas positivas nem esperança alguma que vão além de umas migalhas pomposamente anunciadas e frequentemente impregnadas de uma tibieza que lhes está no sangue. Foram completamente engolidas pelas causas da moda e não se dão conta de que a discussão democrática segue nos termos da esquerda, começando na definição primacial de liberdade. É neste contexto que ouvir alguns líderes partidários e de opinião à direita é um exercício de masoquismo só ao alcance dos mais valentes amantes da liberdade de expressão.

Restaria eventualmente o Chega para agitar as águas. Mas há alguma semelhança, mesmo que remota, entre uma proposta económica corajosa como a de Milei e os ziguezagues do Chega ao som do bombo de Ventura?! Nenhuma. A verdade nua e crua é que o Chega é um partido infantilmente inconsistente e tendencialmente estatista. Embora coloque o dedo na ferida em muitas questões relevantes, não vislumbro em André Ventura a loucura corajosa de um Javier Milei. Pelo contrário, vejo um oportunista igual a tantos outros, que não hesitará, como já o fez, em deitar fora princípios sobre os quais tinha jurado fortes convicções, substituindo-os por outros com mais mercado eleitoral.

Dito isto, claro que não é absolutamente indiferente a composição da futura Assembleia. Seria muito grave um novo governo PS, especialmente se liderado por Pedro Nuno Santos. Contudo, a alternativa, com Chega ou sem Chega, não seria um avanço assinalável para a causa da liberdade.

Por aqui, a Liberdade, quando avança, fá-lo muito devagarinho.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.