Era muito aguardado o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa que foi divulgado no passado 13 de Fevereiro. Causou grande impacto. Soaram reacções e comentários de diferentes sectores. Interessam-me sobretudo as reacções de católicos e de pessoas com responsabilidades eclesiásticas. As autoridades civis serão chamadas a agir na investigação e no julgamento dos autores dos crimes. E a opinião é livre no nosso país para qualquer um. Mas serão os católicos em geral (cada um e todos) e a estrutura eclesial que terão de haver-se com o problema – e que o vencer. A Igreja, não tenho a mais pequena dúvida, será capaz de o fazer.

O relatório é muito mais do que um murro no estômago. São vários. Não que me surpreendesse. Num tema que, desde o princípio do século, faz correr muita tinta em todo o mundo, não admira que este mal, tão indigno, também nos tocasse neste grau. As histórias pessoais são particularmente abjectas. Estas histórias pessoais é que são a verdadeira realidade do sofrimento infligido, não a estatística. Escreveu-o também, há dias, neste jornal, o Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada: «Não há palavras para descrever o horror deste crime [abuso de menores], nem a gravidade deste monstruoso pecado.»

A Igreja esteve muito bem neste doloroso processo, que é uma espécie de via-sacra. Refiro-me especialmente à Conferência Episcopal, que suscitou a criação desta Comissão Independente, que lhe pediu as diligências e o Relatório, que de uma forma geral cooperou abertamente com os seus trabalhos (embora seja necessário ouvir as explicações de quem o não fez) e que ali esteve, com humildade, no auditório da Gulbenkian, a ouvir as revelações.

Foram bons sinais. Mas agora é que se vai virar a página. Como virá-la? Para onde virá-la? A quem pedir orientação e conselho?

O melhor, se puder ser, é pedir orientação e conselho a Jesus Cristo, directamente, sem intermediação. Que fazer? É Jesus quem responde:

«Mas, qualquer que escandalizar um destes pequeninos, que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha, e se submergisse na profundeza do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!» (Mt 18, 6-7)

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Jesus prossegue numa forma que, embora metafórica, não é meiga. É bem mais forte do que a famosa expulsão dos vendilhões do Templo:

«Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida [eterna] coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida [eterna] com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.» (Mt 18, 8-9)

Acontece-nos frequentemente: há trechos nas escrituras (não só nos Evangelhos), que ouvimos muitas vezes dentro d’A Palavra; mas esta só atinge, para nós, o seu significado total quando surgem acontecimentos que nos interpelam e especialmente a convocam. É o que acontece aqui, agora: “ai daquele por quem o escândalo vem!” – palavra de Jesus Cristo. Até parece que falou directa e propositadamente para este caso: “qualquer um que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha e se submergisse na profundeza do mar.”

Perante factos tão tristes, revoltantes e dolorosos, o caminho da Igreja, em Portugal e no mundo, tem de ser este: tolerância zero, como sinalizou o Papa Francisco. A Igreja não pode ser servida por quem é capaz de cometer estes actos. Todos os culpados têm de ser responsabilizados, perante as autoridades civis e canónicas, e afastados nos termos que a cada uma destas corresponde: às autoridades civis, pelo que é de responsabilidade criminal, cumprindo-se as regras penais; às autoridades canónicas, pelo que é de responsabilidade disciplinar e canónica, cumprindo-se as normas canónicas.

Mas se o Papa já tinha indicado como agir perante os autores – tolerância zero – , este Relatório Final confirma ser esse o caminho, mas não chega. Além dos autores, há as vítimas, que merecem a principal atenção. Aqui, a resposta da Igreja – católicos em geral e estruturas eclesiásticas – tem de ser esta: solicitude infinita.

É preciso ir ao encontro das vítimas, ouvi-las (se quiserem falar), proporcionar reparação, sinalizar presença e abertura, pedir perdão pelos anos de distância e indiferença, caminhar o caminho novo com elas (se o quiserem). Se o não quiserem, respeitar a sua escolha e decisão. Deixar, todavia, a porta, a janela, o telefone – sinal de presença e abertura.

A palavra e os gestos da Igreja só podem ser os que seriam os de Jesus Cristo: solicitude, proximidade, encontro, humildade, reparação. É ele também que, logo a seguir, aponta:

«Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos.» (Mt 18, 10)

Do relatório fica um grande vazio, que é convite à acção: o intervalo de 4.303, entre 512 testemunhos individuais e a estimativa apresentada de 4.815 vítimas. O relatório, a pags. 200-201, explica como fez a projecção “de forma muito conservadora”, com base em informações complementares dos declarantes. A respectiva Tabela 9 ilustra, de modo exemplificativo, os critérios dessa projecção. Há cálculos, de facto, “conservadores”, outros não. Mas o importante é conseguir chegar às vítimas, não só para confirmar os números reais (que poderão ser mais baixos ou mais altos), mas sobretudo para estabelecer diálogo reparador. A tragédia do abuso de menores não é uma estatística, mas pessoas concretas, uma por uma – e é para estas que a atenção deve ser dirigida. Agora, também é imperativo conhecer e cuidar.

O relatório é extenso e vasto. Tem de ser lido e relido várias vezes para assimilar e apreender a sua substância. E merece ser aprofundado em novos modelos de cooperação entre a Conferência Episcopal e a Comissão Independente, que superem as insuficiências do anonimato, que vão além das estimativas, que completem o que se viu dever ser feito, mas para que não houve tempo ou meios.

Mas para os católicos, a chamada é exigente: solicitude infinita para as vítimas, tolerância zero para os abusadores. Lembremos sempre Jesus Cristo a falar, agora no Evangelho de Lucas:

«Disse depois aos discípulos: “É impossível que não venham escândalos, mas ai daquele que os causa. Melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem ao mar, do que escandalizar um só destes pequeninos. Tende cuidado convosco!”» Lc 17, 1-3)