1 Pode ser surpreendente, mas a vida em democracia e liberdade implica, sobretudo, ter a capacidade de ouvir opiniões com as quais não concordamos. Por isso, sim, por mais que sejam opiniões deploráveis, existe o direito a ser racista, homofóbico, anti-semita, pró-soviético, pró-nazi, existe o direito a odiar, a detestar, a fazer piadas de mau gosto. O que não existe é o direito de ofender o bom nome e a honra de pessoas em concreto ou de fomentar ou instigar a violência. Sucede que uma pessoa em concreto é susceptível de ser ofendida se o for na sua esfera pessoal e não enquanto membro de uma tribo. Não é a condição sexual, de género, o clube de futebol, a cor da pele, que define aquilo que um cidadão é, mas a sua dignidade que a sua condição de cidadão reveste por si mesma. Se alguém disser que os benfiquistas são todos desdentados, analfabetos e criminosos, eu não tenho tutela jurídica suficiente para o impedir de dizer um disparate desses. Em democracia, não tenho o direito de exigir que essa pessoa seja diminuída quanto à sua liberdade de expressão, por mais absurdo, estúpido ou ofensivo que seja o que ela diz. Viver em liberdade significa, em primeiro lugar, viver numa comunidade que reconhece a liberdade como condição essencial do indivíduo, e não como direito conferido por um funcionário zeloso após a devida avaliação; e implica um grau de responsabilidade e maturidade suficiente para conviver em comunidade com aquilo de que não se gosta, incluindo com a estupidez, a boçalidade, a falta de vergonha. Compreendo que tudo isto seja mais aborrecido do que se julgaria. Afinal, quem entre nós lutou pela liberdade talvez o tenha feito mais para conquistar o legítimo direito a ser ouvido do que a escutar os outros. Mas será um erro se nos começarmos a dividir, como pretendem tantos, mais ou menos democratas, entre um nós e eles feito de puros e impuros, sobretudo num país onde a maioria ainda é feita de brutos, analfabetos funcionais e onde a minoria livre não tem particular relevância nem o especial apreço dos demais.

2 Na década de 1970, Manchester, a cidade industrial por excelência, entrava no pós-industralismo – e na decadência estética e social. O planeamento urbanístico destruiu a harmonia que ainda restava, as pequenas comunidades trabalhadoras foram divididas, num processo de atomização que as colocou em blocos de apartamentos e, nessa altura, Manchester era só uma cidade (sub)urbana, poluída, esteticamente desagradável, que fomentava a agonia, a tristeza e a melancolia. Este desastre estético, aliado a uma oferta cultural praticamente inexistente, criou uma geração blasé. Foi a partir do minimalismo estético, do existencialismo, inspirada em parte pelo camaleonismo de David Bowie, pelas heranças dos Velvet Underground, dos The Doors ou de Iggy Pop e até pelo surrealismo dos Pere Ubu, que essa geração de Manchester produziu os Joy Division (e os The Fall, e, mais tarde, os The Smiths, e por aí fora, a quem se aplicaria tudo isto). Foi uma geração desencantada, que se embrulhou em livros de Conrad, Camus, Dostoievski e Kafka, que se intrigou com o colectivismo e o controlo das massas, que olhou para o futuro – se o houvesse – e o viu totalitário e opressor. Foi assim que nasceu o pós-punk, o pessimismo necessário depois do fogacho niilista do punk. Numa altura em que a Inglaterra parecia entrar num processo longo de agonia social – o que terá levado, inclusive, ao voto de Ian Curtis em Margaret Thatcher, em 1979 – houve uns rapazes que escolheram um caminho. Curtis suicidar-se-ia no dia 18 de Maio de 1980. Há 44 anos. Cinco anos, cinco meses e dez dias antes de eu nascer, morria enforcado um recém-adulto epiléptico que viria a marcar a minha pós-adolescência. Curtis, filho de uma cintura industrial cinzenta, de blocos tristes de apartamentos anti-sociais, entusiasmado pela estética totalitária; um homem em busca do amor – nos outros antes do próprio. O vocalista dos Joy Division, uma das bandas mais amadas pelos inadaptados, um homem velho num corpo jovem, um olhar vivo mas triste e aprisionado num corpo doente, um corpo que dançava, qual soldado epiléptico das SS, numa caricatura de si mesmo, aspirando a liberdade, o sossego e o amor, foi, há vinte anos, uma companhia que amenizava um jovem suburbano como eu, e que nos apaziguava a revolta com uma dose daquela tristeza que faz a felicidade. Tudo isto parece coisa de outra era, também porque do que ali se tratava era da liberdade de ser, e em que talvez se fosse mesmo mais livre do que agora nos julgamos.

3 Amanhã, 22 de Maio, passam 26 anos do desaparecimento de Francisco Lucas Pires. Sobre ele não me alongarei mais do que já fiz, mas não queria deixar que passasse a efeméride pelo silêncio rotineiro. Na edição do Expresso de 3 de Maio de 1997, escreveu que a revolução europeia então claudicava, «quando o homem da rua, velha carne para canhão das guerras continentais, volta a sentir-se súbdito, agora de uma burocracia abstracta e longínqua (Bruxelas), em vez de ver prosseguido o processo emancipatório da cidadania europeia, até à plena consciência e domínio político do novo espaço.» Lucas Pires sonhou sempre com novos patamares de liberdade, e não estou seguro de que tenha sido sempre bem compreendido. A semanas de novas eleições europeias, talvez seja útil recuperar um dos legados mais importantes e, ao mesmo tempo, menos relembrados das últimas décadas.

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