A princípio, imaginei este artigo como uma recensão crítica à reedição, por parte da Caminho, do clássico cabo-verdiano Chiquinho (1947), há muito indisponível em Portugal. Por isso, apesar de me parecer mais urgente escrever acerca de outra questão relacionada com a edição deste livro, não queria deixar de lado o conteúdo do romance. Assim, os primeiros parágrafos deste texto serão exclusivamente acerca da obra de Baltasar Lopes, numa versão muito reduzida do texto que tinha pensado escrever.

Chiquinho conta a história do filho mais velho de uma família da ilha de São Vicente. Como o seu avô trabalhara, ainda que brevemente, no mar e o pai emigrara para os Estados Unidos, de onde lhes fazia chegar alguns dólares, a família de Chiquinho é mais abastada do que o resto dos habitantes de Caleijão, o que tem o condão de reproduzir as dinâmicas de poder alimentadas pelo dinheiro à escala da miséria e da fome (o espanto que num romance parisiense se geraria por um sapateiro ser visitado por um barão, neste romance acontece por a casa de um pobre esfaimado ser visitada por um rapaz com sapatos nos pés).

As personagens que se vão acumulando na primeira das três partes do romance são invariavelmente interessantes, em particular a Mamãe Velha (avó de Chiquinho), cuja severidade ou doçura dependem sempre não do que foi feito pela meninência do bairro, mas pela sua necessidade de se sentir relevante, apesar da sua implacável velhice. Se as mães repreendem as crianças, ela trata-as com doçura, mas quando é ela a primeira a detectar o erro, torna-se implacável.

Contudo, Baltasar Lopes acumula um enorme número de personagens interessantes no primeiro terço do livro, a que acrescenta mais três ou quatro no início do segundo terço, não lhe sobrando depois nem tempo nem espaço para as conduzir a bom porto, deixando-as tão esquecidas dentro da estrutura arquitectónica do romance como o foram por Portugal e por Deus na estrutura interna do mesmo. Quando, perto do fim, Chiquinho é colocado como professor em Morro Braz, a descrição que lhe é feita dessa terra parece servir na perfeição para descrever todo o arquipélago: «Terra onde Nossenhor se esqueceu de passar» (p. 263).

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Se tudo isso permite construir um retrato interessante, quase documental, da pobreza e bondade da população de Cabo Verde na primeira metade do século passado, por outro lado falha enquanto instrumento ficcional, uma falha que é reforçada pela quantidade considerável de vezes em que Baltasar Lopes vai repetindo ideias sem com isso as densificar.

Por fim, até pela pouca familiaridade que temos (ou, pelo menos, que eu tenho, não quero envolver o leitor nesta minha falha) com a literatura cabo-verdiana, Baltasar Lopes é exímio a devolver-nos a língua que imaginávamos dominar cheia de distorções que não julgaríamos possíveis e que nos voltam a apaixonar pelo português (para dar um exemplo, entre muitos outros possíveis, veja-se: «Nhanha é como mês de setembro, só sabe querer com barulho de trovoada» (p. 33) ou «o pão do espírito cedeu à necessidade (…) da cachupa do corpo» (p. 285)).

É aqui que chegamos aos dois enormes problemas que extravasam por completo os méritos e deméritos de Chiquinho.

O primeiro prende-se precisamente com este estranhamento trazido pela mistura entre a língua portuguesa e o crioulo cabo-verdiano. É curioso ouvirmos há décadas os (poucos) defensores do novo acordo ortográfico apregoarem o passo decisivo que com ele demos para a aproximação e intercomunicabilidade das variantes do português. Agora sim, afirmam de peito cheio, podemos compreender-nos uns aos outros sem perdas de sentido.

Os problemas desta abordagem foram já bem sintetizados, por exemplo, no mais recente livro de Manuel Monteiro (Por Amor à Língua e à Literatura). Ainda assim, gostaria de acrescentar que me pareceria bem mais sensato que uma pequena parcela do dinheiro gasto nesta absurda amputação linguística tivesse sido investida no robustecimento dos dicionários online, para que estes abrangessem mais amplamente as gírias locais e os crioulos dos países de língua oficial portuguesa (e já agora, para se prosseguir com a disponibilização gratuita dos maiores dicionários de língua portuguesa, um caminho iniciado pelo Priberam e pela Infopedia e que há pouco mais de um ano teve um impulso extraordinariamente importante com a digitalização e disponibilização gratuita do Dicionário da Academia das Ciências, onde por fim podemos consultar a etimologia dos verbetes, mas ainda não o seu primeiro uso). Chamem-me teimoso, mas parece-me que, como Chiquinho torna bem claro, o objectivo da compreensibilidade mútua seria mais rapidamente atingido se conseguíssemos descobrir o que significa em crioulo cabo-verdiano nêgo (escravo) do que através da uniformização da escrita de ação. Este problema torna-se ainda mais irónico ao notarmos que Baltasar Lopes escreveu O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, há anos indisponível no mercado português.

O segundo problema é da exclusiva responsabilidade da Caminho, uma editora a que muito devemos, e parece-me sintomático da forma como hoje se tratam os livros e a literatura. Na badana desta edição, lemos, num português algo cacofónico, que «a presente edição segue a primeira edição, de 1947, com uma atualização ortográfica de acordo com as regras atualmente em vigor». Certíssimo. Ainda assim, ao abrirmos o livro, assustamo-nos ao perceber que, afinal, segundo a ficha técnica, não existe ninguém responsável pela edição e ninguém responsável pela revisão. Significa isto que a editora optou por digitalizar o texto e, sem mais nenhum cuidado, paginou-o e disponibilizou-o no mercado. Disto resulta que o livro esteja repleto de gralhas. Não li o texto com óculos de revisor, mas ainda assim encontrei vinte e três erros gritantes. Tenho a certeza de que este número é bastante conservador.

Os problemas são de todo o tipo: vírgulas entre sujeito e predicado, pontos finais a meio de frases, aspas que fecham sem nunca se terem aberto, problemas de translineação, frases atribuídas a personagens porque ninguém carregou no enter para as atribuir ao narrador, ausência de espaços entre palavras e vírgulas, e gralhas que qualquer criança que tenha usado o Word duas vezes na vida conseguiria identificar. Deixo só cinco exemplos, de outros tantos possíveis:

  1. 25: «Uni homem» em vez de «um homem».
  2. 27: «corno um gato» em vez de «como um gato».
  3. 97: «segninte».
  4. 135: «s6» em vez de «só».
  5. 287: «saudadc».

Este problema é particularmente grave quando este livro em específico exige, ao leitor pouco familiarizado com as vicissitudes do português de Cabo Verde, uma suspensão da descrença a favor da editora, de forma a confiar que será mesmo «engulir» em vez de «engolir» e que as palavras que desconhece nascem da vontade do autor e não da arbitrariedade do scanner.

Além disso, sabemos que, devido a esta contenção extrema de custos, o mais provável será que edições subsequentes do livro se baseiem nesta que agora chega ao mercado, pelo que a remoção de um apurado trabalho humano nesta fase resultará em perdas consecutivas de inteligibilidade até que o texto se torne completamente incompreensível.

Não tenho qualquer dúvida acerca da dificuldade do trabalho de uma editora quando os índices de leitura em Portugal são o que todos sabemos. Há uma diminuição de receitas que sufoca o mercado editorial e torna, por isso, meritória a aposta em literatura pouco comercial como é a de Baltasar Lopes. Contudo, a resposta nunca pode passar nunca se diluir a qualidade do produto de forma a reduzir custos. Perdem os leitores, que rapidamente se desinteressam e se dedicam a outras actividades mais prazenteiras, perdem as editoras, cujos leitores deixam de considerar credíveis, e perdem os escritores, que vêem o seu trabalho de anos ser tratado desta forma negligente por quem os deveria proteger e respeitar acima de tudo.