A vitória de Donald Trump já foi em 2016, e continuará a ser em 2024, alvo de múltiplas análises  e a base de novas teorizações políticas. O fenómeno é de tal forma complexo que, na verdade, a  única forma de o compreendermos é através de um caleidoscópio científico que combine o  conhecimento plural de várias disciplinas. A vitória de Trump é aquilo que podemos apelidar de  “fenómeno social total”.

O artigo que escrevo não pretende teorizar de forma completa uma explicação para o resultado  das eleições norte-americanas, nem sequer o que representa Trump. É também um artigo não  qualificativo e que não pretende com ele gerar qualquer tipo de leituras secundárias. O  contributo deste artigo é adicionar uma visão, que em complemento com tantas outras, poderá  ajudar a melhor descrever o resultado do 5 de novembro. Em concreto, quero-vos escrever sobre  de que forma a ciência comportamental pode também explicar este resultado.

A ciência comportamental por detrás da campanha de Trump 

Daniel Kahneman e Amos Tversky, influentes académicos que viriam a vencer o Prémio Nobel  das Ciências Económicas (2002), são hoje mundialmente reconhecidos pelas contribuições na  área da psicologia do valor e da tomada de decisão. Em particular, a teoria batizada de Prospect  Theory, é hoje parte central de qualquer estudo de Economia pela notável desencriptação do  conceito de racionalidade, conceito chave em qualquer exercício de modelação de  comportamento. Esta teoria revolucionou a compreensão da tomada de decisão ao  compreender brilhantemente a forma como os humanos se relacionam com o risco.

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A ideia é relativamente simples, mas nem por isso menos poderosa. Os resultados das nossas  decisões e ações são definidos em relação a um ponto de referência e não de forma isolada e  absoluta. Por outras palavras, sempre que tomamos uma decisão na nossa vida ou realizamos  qualquer tipo de ação, a forma como avaliamos a sua contribuição para a nossa felicidade (em  jargão, utilidade) depende do ponto de partida. Os autores vão ainda mais longe. Para o mesmo  ganho gerado por uma ação, o impacto na nossa felicidade é tanto maior quanto pior for o ponto  de partida. Esta é uma ideia, como vemos, simples e com a qual facilmente nos identificamos:

1) Um adepto de futebol fica diferencialmente mais feliz quando a sua equipa marca um golo  quando a equipa está a perder 0-1, do que quando a sua equipa está a vencer por 1-0.

2) Um trabalhador que recebe um aumento salarial de 100 euros ficará mais satisfeito se  anteriormente ganhava 800 euros, em comparação com outro trabalhador que recebe o mesmo  aumento mas já ganhava 2000 euros.

A questão que se coloca é: como é que este conceito pode explicar a vitória de Trump? 

Trump sabe explorar a psicologia do valor ao seu máximo através de uma estratégia bicéfala. Trump e a sua campanha fazem um esforço dantesco para colocar o imaginário coletivo do povo  americano naquilo que podemos chamar de “domínio das perdas”. Tentando pintar uma visão  negra sobre o país, explora intensamente os seus problemas, criando a imagem de que o país e,  importante, a economia está numa situação extraordinariamente negativa. Não raras vezes, o  conteúdo gráfico das suas publicações e as palavras escolhidas nos seus discursos apresentam  um tom e visual depressivo e agressivo. Frases como “Eu penso que o nosso país está, hoje, na  posição mais perigosa que alguma vez esteve” ou imagens assustadoras na fronteira do sul dos  Estados Unidos da América são episódios recorrentes. Naturalmente que por vezes falham e o exagero se aproxima do ridículo, como ilustrado na célebre fábula dos cães e gatos de Springfield,  Ohio. Esta é a etapa 1.

De seguida, Trump e a sua campanha esforçam-se por conceptualizar a ideia de salvador  nacional, criando a estória de que através de medidas fortes e fáceis de compreender (o antigo  “wall” deu agora origem ao “massive deportations”), é possível trazer ganhos ao país e retirá-lo  do “domínio das perdas”. É, aliás, esta a génese do movimento MAGA. Recuperar algo perdido e  converter algo perdedor, em vencedor. Esta é a etapa 2.

Se credível, o público-alvo perceciona as políticas de Trump como um salto significativo na sua  felicidade coletiva. Como se a sua equipa de futebol estivesse a perder 0-1 ao intervalo, mas a  entrada de um novo jogador promete alterar o decurso do jogo e o seu resultado. A este respeito,  e também de acordo com a Propect Theory, sabemos que quanto mais no “domínio das perdas”,  menor a aversão ao risco. Isto é, da mesma forma que quando uma equipa de futebol está a  perder 0-1 e o treinador sente-se menos avesso ao risco e favorece retirar defesas para colocar  atacantes, também os eleitores quando estão a perder, favorecem candidaturas que introduzam  risco, ou, como estes perceberão, oportunidade. Estes efeitossão poderosos, gerando um círculo  vicioso capaz de gerar o magnetismo necessário para vencer as eleições.

Harris, um erro de falsa partida 

Comparemos agora esta estratégia com a retórica de Kamala Harris e da sua campanha. Ser o  incumbente é historicamente um fator preditivo de sucesso no caso norte-americano, mas este  fator tende a ser diluído se o imaginário coletivo acreditar que está hoje pior do que há 4 anos.  O problema, claro está, é que Harris não pode, por definição, seguir a mesma estratégia de  Trump. O facto de ter estado na administração Biden durante 4 anos reduz, e muito, os graus de liberdade da sua estratégia de comunicação e, sobretudo, de combate à retórica de Trump. E  não podendo combater Trump com uma estratégia semelhante, resta-lhe como melhor  estratégia um esforço de malabarismo hercúleo: ora defender o estado atual da nação, algo que  cria separação com quem à partida não votaria Democrata, ora reconhecer erros do passado e  promover alterações de posição, algo que o único efeito que traz é erosão da sua base. Este vai-e-vem tem também um efeito negativo na conversão de indecisos, uma vez que a última coisa  que um indeciso aprecia é incerteza. Este exercício de malabarismo foi visível de forma clara. Por  exemplo, a alteração de posição de Harris quanto às políticas de imigração ou quanto ao fracking são exemplos paradigmáticos e que foram temas centrais ao longo da campanha. Ora, como se  vê, a escolha de Harris foi, à partida, acredito eu, um erro de falsa partida do Partido Democrata que preferiu escolher um candidato insider ao invés de um candidato outsider que teria muito  mais credibilidade para combater Trump e a sua narrativa.

MAGA para sempre? 

A questão que se coloca agora é: será que esta estratégia de Trump funciona sempre? A resposta  curta é não. A resposta longa é talvez. Para que o talvez se converta em sim, é necessário que a  estória de Trump seja minimamente credível. Claro está que forçar o ponto de vista de que o  estado da nação é mau funciona se, e só se, a população se reveja nesta visão. E o que é que nos  dizem os dados?

De acordo com um estudo da Gallup publicado em Outubro deste ano, mais de 52% dos norte americanos dizem estar em 2024 numa situação pior do que estavam em 2020. Este valor é um  recorde na série de análises da Gallup conduzida desde 1984, evidenciando uma tração potencial significativa para a estratégia de Trump. Curiosamente, este valor era em 2020, quando Trump  perdeu as eleições, de 33%, um número historicamente reduzido.

Estes números oferecem uma perspetiva clara sobre a razão pelo qual a estratégia de Trump  funcionou em 2024, mas não em 2020. Em 2024 a retórica tinha credibilidade dentro da  população, em 2020 não. Apesar de não existirem dados em 2016 para este mesmo indicador,  outros indicadores da Gallup correlacionados que medem a satisfação do povo norte-americano  com o estado da nação revelam que este valor era em 2016 francamente baixo. Ou seja, números  apresentam-se em linha com o racional de que Trump beneficia de um ponto de partido mau e  perde com um ponto de partida bom.

Esta é uma conclusão importante, também porque nos permite teorizar de forma mais ampla sobre movimentos desta natureza e as condições necessárias para que tenham sucesso. Em  resultado desta análise, diria que existem pelo menos duas:

Em primeiro lugar, é importante que a confiança popular no estado da nação seja baixa à partida.  Desta forma, isto torna movimentos desta natureza tanto mais críveis quanto mais próximos  duma situação de crise. Talvez por isso, em momentos de crise, movimentos tipicamente mais  radicais e antissistema sejam os primeiros a tentar aproveitar a situação. Talvez também por isso  é que tipicamente estes movimentos tentem engrandecer problemas menores da sociedade,  tentando deslocar o ponto de referência da população para o “domínio das perdas”. O  paralelismo com o caso português, não sendo o objeto deste artigo, fica ao critério do leitor.

Em segundo lugar, ser um outsider é decisivo. O seu contrário reduz os graus de liberdade do  candidato e limita significativamente sua estratégia.

Garantidas estas condições, uma candidatura da natureza como a de Trump tem as suas bases  lançadas. Naturalmente que a estas condições se deverão juntar outras, mas deixo essas para  outras disciplinas (por exemplo, comunicação e marketing).

A compreensão da psicologia da nação foi decisiva em 2024. Trump e a sua campanha foram  hábeis a converter o pessimismo em messianismo. O Partido Democrata falhou, mesmo com a  oportunidade gratuitamente oferecida pela saída de Biden, em reinventar a sua estratégia e  preferiu a defesa num tempo de ataque. Em 2028, não sabemos que mundo teremos. Aquilo  que sabemos é que tal como aprender com 2020 foi decisivo para vencer em 2024, também em  2028 será decisivo aprender com 2024. Especialmente para o Partido Democrata.