Aconteceu este ano comigo que me perco por vezes nos meus pensamentos e pouco ligo ao que se passa à minha volta. A caminho da escola para buscar o meu filho, num dia quente, num daqueles dias muito quentes que tivemos em Maio, passei por três jovens, uma rapariga e dois rapazes, que olhavam para o interior de um carro estacionado. Um deles parecia estupefacto, o outro deu um passo para trás, levantou os braços e em desespero ouviu-o gritar “com o c…”. Vi a rapariga horrorizada ao mesmo tempo que o primeiro rapaz estupefacto lá reagiu e disse: “vou partir o vidro”. Devido ao espalhafato algumas pessoas pararam e aproximaram-se. Um bebé fora deixado dentro do carro à torreira do sol. São fracções de segundo que parecem uma eternidade. De repente, um homem desce a rua a correr. É o pai que se ausentara por uns instantes e que ouve o que tem de ouvir, principalmente dos três jovens que se querem certificar que está tudo bem com o bebé.

Há um pequeno, pequeníssimo texto de Claudio Magris (compilado nos ‘Instantâneos’ que a Quetzal publicou) escrito em Junho de 2014 com o título de ‘Tudo bem’ e que roubei para intitular esta crónica. Neste, Magris conta-nos como numa noite de sábado, na pequena cidade de Schio, em Vicenza, após ter jantado sozinho numa pizzaria vazia, saiu para a rua e se sentou no lancil do passeio a fumar o seu cigarro da noite. Nesse momento um grupo de jovens, raparigas e rapazes, passou por ele e um deles, vendo-o sentado no chão, perguntou-lhe: ‘Tudo bem?’ Surpreendido, Magris respondeu-lhe que sim e uma conversa entre ele e aquele grupo nasceu ali, naquela rua, daquela circunstância, engano, mal-entendido.

Magris apercebe-se depois, já os rapazes e as raparigas se afastam, que nunca perguntou a ninguém sentado no passeio se estava tudo bem. Aquela noite foi para ele bela como aquela tarde foi para mim reconfortante. Ainda não tenho a idade de Magris (nem a experiência menos ainda a sabedoria) tal como já não tenho a das raparigas e dos rapazes da noite em Schio ou da tarde em Lisboa. Perdi a força da indignação imediata porque me surpreendo cada vez menos, mas ainda (ou já?) distingo o que está certo do que é errado. Apesar da histeria com que tantos nos apregoam o fim do mundo, são pequenos episódios como o da reacção atenta dos jovens à criança trancada num carro à torreira do sol que me fazem crer que ficará bem entregue a herança que nos foi transmitida. Está tudo bem.

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