A “minha” história começa em 1967, quando uma coligação de países árabes liderados pelo Egipto e pelo seu presidente Gamal Abdel Nasser, um daqueles protagonistas de tragédias que os media europeus “lavaram” como herói, entende “resolver o problema israelita” pela junção das suas forças militares. Como sabemos hoje, o resultado foi humilhante para a coligação, que levou forte e feio das forças armadas israelitas lideradas por nomes que hoje nos são familiares como Yitzhak Rabin, Ariel Sharon, Ezer Weizman ou Moshe Dayan.

Menos conhecido é o facto de a coligação envolver forças militares dos países árabes próximos, mas também o apoio político de outros mais distantes, como a Argélia, o Kuwait ou a Tunísia. E é deste que vêm os genes do protagonista da minha história.

A Tunísia vivia, antes de 1967, numa sociedade relativamente plural, onde o convívio entre judeus e muçulmanos era cordial e pacífico. Na verdade, era difícil dizer quem eram uns e outros à parte do cerimonial religioso, cada qual fazendo a sua vida normal de cidadão que se levanta de manhã para trabalhar e volta à noite para a família. No entanto, a humilhação da guerra de 1967 leva ao sucesso dos populistas islamitas e à perseguição dos judeus sefarditas (sim, aqueles que já tinham sido perseguidos pelos católicos ibéricos), o que conduz a um êxodo, mais um, de judeus em duas direções, Israel e França.  Para esta vai o Sr. Haccoun, judeu relativamente bem na vida em Tunes, que se vê lançado com uma mão à frente e outra atrás para terras de França.

Entre as minhas peripécias profissionais, fez o acaso que hoje seja colega do seu filho Fabrice, um executivo francês condecorado, antigo conselheiro do presidente Hollande. A história de Fabrice Haccoun, inscrita no livro de sua autoria Ralloumons Les Lumiéres (fácil de achar nas livrarias online) é semelhante à história de tantos outros filhos de imigrantes em França, entre os quais alguns milhões de descendentes dos nossos conterrâneos. Com a agravante de levar dois pesos nas costas, ser judeu e magrebino, dificilmente vistos como vantagens na sociedade francesa.

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O interessante para esta história é a defesa do serviço militar obrigatório (SMO) feita por ele numa perspetiva que me fez, a mim, mudar completamente a opinião sobre o assunto. Claro que o tema voltou a ser discutido por causa das tropelias de Putin e da ameaça que a Rússia do sujeito nos traz e aos nossos aliados mais próximos dele. A ideia de um serviço militar vai bater diretamente naquilo que é militar. Ainda assim, andar aos tiros nunca foi uma atividade particularmente inteligente, o que quer dizer que, podendo demorar alguns anos, os campos de batalha serão, aos poucos, dominados por máquinas que cumprem ordens sem pensar e são muitos mais certeiras, pelo que a ideia de andar a recrutar jovens para vestir fardas não é, em princípio, algo de inteligente também. Hoje o teatro de operações da Ucrânia está repleto de objetos voantes “inteligentes”.

A história deste judeu de origem tunisina que enveredou pelo serviço militar mostra uma vertente nunca valorizada no serviço militar obrigatório: a destruição da comunidade. Com efeito, o facto de ser obrigatório (em França foi até 1996), obrigava pessoas de todas as origens a partilhar uma caserna, uma mesa de refeição, as agruras de um treino militar rigoroso e perigoso, unindo-as na defesa do coletivo que constituíam.  Ele partilhou com outros franceses de todas as origens e religiões a necessidade de se defenderem uns aos outros. E, testemunha ele, ainda hoje os seus melhores amigos são muçulmanos de origem argelina e bretões cristãos.  Afinal, face à cultura francesa, os costumes judeus e islâmicos não são assim tão diferentes e teve de defender, com os seus colegas, o direito a não ser servido de carne de porco à refeição, por exemplo.

Estou a pegar no exemplo extremo deste meu colega, porque nos traz algo que eu, pelo menos, nunca tinha pensado antes. O serviço militar obrigatório, sendo quase inútil em termos estritamente militares, é fundamental em termos sociais. Não porque “ocupa desempregados”, ou porque “faz homens”, ou porque “vai ajudar no combate aos incêndios” e outras imbecilidades que é vulgar ouvir. Mas porque destrói o nosso sentido de comunidade. Destrói o sentimento de sermos alentejanos, ou ciganos, ou brancos, ou muçulmanos, ou pobres, ou brasileiros, ou… No fundo, a necessidade de nos defendermos uns aos outros e só podermos confiar naqueles que nos são próximos é colocada num plano que nos mostra que “os nossos”, afinal, são aqueles que víamos como “eles”.

Penso que alguns dos mais radicais nos diziam que era uma lição de patriotismo, mas, no fundo, não passa de uma lição de cidadania. A última de todas as lições de cidadania. Aquela que nos ensina que a diferença, no fim do dia, não existe, porque aprendemos a colocar a defesa da nossa vida e do nosso bem-estar nas mãos de alguém a quem não perguntamos a religião, a cor da pele, nem a orientação sexual. O que é algo que se tenta fazer de forma atabalhoada e questionável na escola como matéria de ensino que, surpresa das surpresas, vai chocar com os ensinamentos dos pais e fortalecer o espírito de comunidade. Ou seja, vai ter o efeito contrário daquilo que se pretende.

Eu bem posso tentar que uma criança aprenda que é irrelevante para a sua vida que o seu colega do lado seja homossexual, mas o facto é que os pais leram nos escritos da sua religião que tal é proibido e, no dia seguinte, vou tentar ensinar-lhe que a religião dele também é irrelevante. A verdade é que os desafios do treino militar o provam sem, na prática, desafiar os ensinamentos e tradições familiares pela simples razão que dispensam um porquê.

Não tendo dados, nem tempo para os recolher, acho que seria interessante que alguém se desse ao trabalho de conseguir perceber a relação entre a formação de comunidades – aquilo a que os media se referem como “populismos” – e o fim dos SMOs por esse mundo fora. Claro que não está estabelecida a relação, nem sei se alguma vez tal será feito, mas o facto é que os argumentos xenófobos em eleições francesas tinham um sucesso marginal antes do início deste século, o mesmo se podendo dizer do resto dos países europeus e continua-se a tentar combatê-los de forma absurda formando outras comunidades, coisa que se poderia resolver, em princípio, com um SMO.

Por isso, o valor do SMO está muito, mas muito, para lá da sua valia militar, até porque não será com um exército de miúdos em idade de escola que se combatem drones. A sua valia está nos ativos de cidadania que cria e nos problemas que resolve a jusante na sociedade. Acho que até os pais das crianças de Famalicão vão concordar comigo, porque o serviço militar não vai ensinar nada que seja contra os ensinamentos que dão aos filhos. Vai-lhes ensinar que, no fim do dia, somos todos bons e todos precisos. E isso é que é ser cidadão, independentemente das ideias que temos.

Nota: Nunca fiz o SMO, fui passado à reserva antes.  E, claro, o SMO é independente do sexo, do género ou do que lhe quiserem chamar.