Quanto tempo e dinheiro leva a formar um cérebro? Existe uma infinidade de respostas possíveis para esta pergunta, nenhuma delas certa e nenhuma errada. Mas se pensarmos que os nossos filhos passam 17 anos a serem sujeitos a aulas de alguém – para além dos seis anos que estão, basicamente, a nosso cargo ou naquilo a que chamamos de pré-escolar -, vamos cair nos 23 anos. Tudo isto só para termos um cérebro pronto a entrar no mercado de trabalho daquilo a que chamaremos de “trabalho intelectual”. Só para entrar, claro. Depois há uma vida de experiência e/ou escola para se atingirem níveis superiores de conhecimento. Sabendo que a vida de trabalho de um ser humano em Portugal termina por volta dos 65 anos, um cérebro leva 35% de uma vida ativa a aparecer para ser usado nos 65% que sobram. Em termos grosseiros, os seres humanos reproduzem-se com uma enorme facilidade, mas os cérebros que os corpos encerram são infinitamente mais preciosos.

Acho que a esmagadora maioria de nós não tem noção da preciosidade de cada um dos cérebros que criamos, porque o nosso raciocínio animal nos leva a pensar na facilidade com que o corpo se reproduz e não na dificuldade que é produzir um cérebro. Talvez o facto de não ser um professor profissional, e de ter relativamente poucos alunos, me tenha feito perceber a dificuldade de criar cérebros, ganhando uma preocupação excessiva com aqueles 35% de formação para os quais contribuo. Para os profissionais, aquilo é, se calhar, como virar frangos. Mas para mim, fico sempre a pensar que não dei tudo o que poderia ter dado embora, racionalmente, me dedique muito mais do que aquilo que recebo e os meus colegas me dizerem que isso não faz sentido.

Talvez por estas razões seja relativamente opaco para a esmagadora maioria da população a verdadeira crise pela qual Portugal passa e vai passar. Vejamos o gráfico abaixo:

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A crise da segurança social, ou melhor, o desbalanceamento entre as pessoas que trabalham e as pessoas que recebem reforma é o prato das quartas-feiras. Algo que nos é repetido vezes sem conta, mas cuja solução é relativamente simples. Ou se aumenta a idade de reforma, ou se passam os planos de reforma para esquemas individuais (como o 401k americano), ou se reduzem as reformas. No abstrato, até podia haver uma pessoa a trabalhar e 9 milhões de reformados, desde que recebessem 1 cêntimo de reforma. Esta crise, que resulta da redução na reprodução de corpos humanos, só é uma crise porque, numa república de interesses, estes sempre se sobrepuseram à matemática.

A verdadeira crise que está à nossa frente reside no facto de mais de um terço dos cérebros que criamos saírem do país. Vou repetir o número porque vale a pena: um terço. De acordo com os dados da Pordata, hoje emigram de forma permanente cerca de 29 mil pessoas e nascem 87 mil. Um professor primário que olhe para uma sala de 30 alunos, pode logo dizer que 10 daqueles alunos vão sair para o estrangeiro de forma permanente assim que o seu cérebro estiver formado. Mas para mim, que tenho 16 alunos de mestrado da área de Física – cérebros, estes, brilhantes –, em média, cinco deles vão emigrar de forma permanente depois de todos nós investirmos 15 ou 16 anos de educação.

Também não é difícil perceber que um físico terá muito mais oportunidades de emigrar, por ser escasso no mundo inteiro, do que um canalizador. Não que tenha algum mal ser canalizador, mas porque formar um físico, um cérebro dos muito bons, leva muito dinheiro. E quem diz um físico, diz um médico, um engenheiro, tudo aquilo que dá muito, mas muito trabalho a fazer. Matematicamente, diria que a distribuição dos cérebros que emigram é muito desviada, porque quanto mais difícil for formar, mais fácil será serem aliciados.

Ou seja, a este ritmo, Portugal seria uma economia “arrumada” em 10 anos, não fosse a compensação que vamos tendo com a imigração, que hoje nos vem trazendo alguns cérebros que os outros perdem para nós. Como somos uma economia minúscula, o fluxo que vem de outros lados vai compensando, embora tenhamos que lutar com economias muito mais desenvolvidas por esses cérebros. Valha-nos a praia, o surf e o sol; coisas que Governo nenhum vai conseguir estragar. Acho eu…

Ora, face àquela que é a maior ameaça à nossa economia e à necessidade premente de investimentos que possam capturar os cérebros que tanto nos custam formar, o que é que a nossa república entende como estratégico? Calhau!

O chamado “Recuperar Portugal, Construindo o Futuro – Plano de Recuperação e Resiliência”, é uma admirável oração à senhora da asneira. Tem a particularidade de responder de forma enérgica a um conjunto alargado de problemas concretos que não temos. Não temos problemas de infraestruturas, não temos problemas de transformação digital, não temos problemas climáticos próprios. Temos problemas de educação decorrentes do facto de a educação secundária ser gerida por um sindicato, mas essa questão não se resolve com dinheiro, nem sequer é tomada como um problema no dito plano.

Não existe uma única medida direcionada ao maior e mais premente dos problemas que temos e para o qual não existe uma “linha estratégica” (seja lá o que isso for), que é o facto dos cérebros que criamos, o maior dos ativos de qualquer país, estarem a ser escoados para outros locais do mundo. Pelo contrário, temos linhas estratégicas para facilitar esse escoamento em infraestruturas e na criação de mais dívida pública, para que o custo do seu trabalho cá seja acrescido de uma carga para a qual não contribuiu.

E teria sido esse o melhor dos planos estratégicos. Em vez de usar o dinheiro que vamos gastar em problemas que não temos, usamos para resolver o que temos: a dívida pública. Que, por sinal, foi criada para financiar coisas “muito estratégicas”.  Se usarmos esse dinheiro para reduzir impostos, podemos aumentar o rendimento real das pessoas que queremos que fiquem e, ainda, captar as que queremos que venham. Parece simples este plano? É, talvez por isso, o melhor de todos. E se duvidam, é olhar para a história de Portugal. Se for, de facto, importante e estratégico, aparece feito. Se for dado como estratégico por um Governo, vai direto para o armazém dos elefantes brancos e para a coleção das coisas muitíssimo importantes que temos que passar a vida a pagar.