Comecei a conceber este artigo Domingo, dia 5 de Março, enquanto corria livre e em paz, na areia, à beira-mar na minha terra, a Costa da Caparica. Escrevo-o hoje, em Varsóvia, 6 de Março de 2022, onde estou em trabalho, num quarto de hotel a 250 km da Guerra na Ucrânia.

Só há um único responsável por esta guerra, pela morte de civis, homens, mulheres e crianças, pela destruição generalizada da Ucrânia, das suas comunidades, vilas e cidades e esse responsável é Vladimir Putin.

Putin invadiu uma nação soberana sem qualquer justificação. O direito internacional, os princípios humanitários, a estabilidade pós II Guerra Mundial foram destruídas pela ambição de deixar uma marca na história, iniciando a reconstrução da União Soviética. As suas ambições imperialistas são moralmente execráveis e merecem o nosso vigoroso repúdio.

Putin é um ditador e um assassino. A sua afirmação de invocar o seu poderio nuclear para esta guerra é inconcebível. Um líder de uma superpotência quer empurrar a civilização para a guerra nuclear. Não há justificação para tamanha ofensa. Todos sabemos disto, inclusive o seu povo, o povo russo que, protestando contra a guerra, já teve milhares de manifestantes detidos desde que se iniciou esta invasão.

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No entanto, muitos tem referido que erros continuados dos líderes norte americanos e europeus, como o intervencionismo recorrente e a vontade de expansão da NATO, teriam levado a este desfecho. Existe, por exemplo, o mito de uma promessa feita pelo Ocidente à União Soviética de não expandir a NATO para o leste após a queda do Muro de Berlim. De acordo com a versão russa dos eventos, o secretário de Estado dos EUA, James Baker, teria prometido ao líder soviético Mikhail Gorbachev em 1990 que a organização do Atlântico Norte não se moveria para o leste se a URSS permitisse a reunificação da Alemanha Oriental e Ocidental. Não há qualquer prova que tal promessa tenha sido feita e até o próprio Gorbachev afirmou em Outubro de 2014 que o tema não foi discutido na época.

Os que apontam estes erros e que falam da NATO e dos líderes europeus e americanos como culpados de hostilizar Putin e a Rússia, são os mesmos que se esquecem de como em 2001 Rússia e NATO estavam alinhadas contra o terrorismo da Al Qaeda, se esquecem de um Putin falando favoravelmente de uma cultura europeia, um Putin que nunca falava de forma hostil em relação à NATO, esquecem-se que Putin em 2004 falou favoravelmente de uma adesão da Ucrânia a União Europeia afirmando que a Rússia também beneficiaria desse alinhamento criando uma zona de paz e prosperidade, os que apontam erros são os mesmos que se esquecem de que em 2008 Putin participou numa cimeira da NATO onde se discutiu a adesão a esta organização de novos estados da ex URSS. São factos que não servem as suas narrativas.

Mas existem casos concretos. Por exemplo, os Estados Unidos tentaram influenciar o resultado da Revolução Ucraniana de 2014 que derrubou o presidente Viktor Yanukovych, quando este se recusou a assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia, para não falar já da intervenção da NATO na Jugoslávia em 1999 para assegurar um Kosovo independente. E se é verdade que a Rússia participou activamente no planeamento da acção da Allied Force, o facto é que essa acção militar nunca teve o apoio das Nações Unidas sendo uma claríssima violação do direito internacional. Isto para não falar do Iraque e da Líbia entre outros exemplos.

Há perguntas legítimas que devem ser feitas sobre o que ganha a NATO e os seus países ao continuar a incluir novos membros. Os actuais participantes da aliança estão comprometidos com a defesa colectiva e um ataque contra um é considerado um ataque contra todos. Temos de perceber se o propósito da NATO, que é defensivo, que é de nos defender de ataques de estados imperialistas, liderados por autoritários, antidemocráticos e antiliberais, se esse acolhimento a determinados estados antagonizou a Rússia, sendo um pretexto justo para a actual invasão.

Estamos perante o problema do ovo ou da galinha na expansão da NATO na era pós-guerra fria. De facto a Rússia tem sido mais agressiva em relação à Geórgia e à Ucrânia do que, em relação aos estados bálticos com os quais a Rússia também faz fronteira. A adesão à NATO dos bálticos é um impedimento à agressão russa? Ou a agressão russa contra a Ucrânia e a Geórgia é uma resposta natural à admissão dos países bálticos na NATO e uma tentativa de impedir o que a Rússia vê como ameaças as suas fronteiras?

Para responder a estas perguntas penso que nos devemos focar num dos argumentos para a intervenção na Ucrânia por Putin e que assenta na presunção de que a Rússia tem direito a um perímetro defensivo de contiguidade geográfica, uma chamada esfera de “interesses”, um Lebensraum “Ratzeliano”, incluindo o território de outros estados contíguos.

Esta posição parece-me indefensável.

Aceitar o argumento de que os ‘perímetros defensivos’ da Rússia de Putin lhe dá o direito de dominar e/ou invadir territorialmente os estados da Europa Central e Oriental priva esses estados da sua soberana autonomia e ignora os interesses nacionais desses estados. Pensar desta forma é aceitar que os estados menores ou regiões inteiras não têm o direito soberano à autodeterminação.

Uma lógica semelhante, aplicar-se-ia a qualquer tentativa por parte das potências euro-atlânticas de forçar os estados pós-soviéticos a saírem de seu “habitat natural” para se alinharem com o Ocidente, negando a possibilidade do que alguns consideraram o seu efectivo relacionamento com Moscovo, como foi o caso da Bielorrússia, da Arménia ou alguns estados do Cáucaso como o Cazaquistão. O conceito de áreas de influência exclusivas sobre um estado ou estados é totalmente incompatível com os valores euro-atlânticos.

Saliento que a cada vez maior influência económica e militar da China na antiga Ásia Central soviética demonstra que Putin aceitou um segundo player no seu buffer de influência. A tolerância da Rússia à expansão da China na Ásia Central baseia-se no entendimento político dos dois países para degradar a construção das instituições euro-atlânticas dominadas pelos EUA/NATO e que sobreviveu à Guerra Fria. Esta demonstração de consideração russa pelos interesses chineses numa vizinhança compartilhada refuta por completo a reivindicação de Moscovo e dos realistas da existência de uma esfera de influência exclusiva. A única coisa que interessa de facto é a vontade de poder e conquista imperial sobre os menos fortes.

Uma última questão é a simplificação grosseira da geopolítica. É erróneo aceitar que a estabilidade da guerra fria dependia do reconhecimento mútuo das esferas de influência dos EUA e da União Soviética. Além disso, embora seja verdade que a bipolaridade da política entre grandes potências é sustentável, isso já não é verdade num mundo multipolar como o actual. A suposição de que a Rússia deveria ter um perímetro defensivo, uma esfera de influência na sua vizinhança que impede a presença de qualquer outra potência não regional, revela unicamente uma visão neo-imperialista do mundo.

O tempo das esferas de influência acabou, quando caiu o muro de Berlim.

Estou convencido que, tivesse a Ucrânia mantido o seu enorme potencial nuclear, tivesse a Ucrânia duvidado e recusado o memorando de Bucareste em que, em troca do seu manancial nuclear, o mundo livre lhe assegurava protecção contra o intervencionismo imperialista de Putin, tivessem estas duas coisas acontecido e aquilo a que assistimos hoje não estaria a acontecer.

Um líder como Putin só respeita a força e o poder do outro, assusta-o viver paredes meias com estados ex-soviéticos que sabem o poder que a liberdade, a democracia, o estado de direito e os mercados livres têm na prosperidade do povo que assim se liberta da dependência do Estado e de seus governantes. Para Putin as esperanças e ambições dos indivíduos livres, os seus direitos e dignidade, são lhe absolutamente irrelevantes. Não esperem misericórdia de um ditador imperialista.