Desde o início da pandemia em Portugal passaram oito meses. Descontando os três primeiros, em que foi preciso lidar com algo desconhecido, sobraram cinco para preparar o que todos os especialistas disseram que iria acontecer. E que está a acontecer. Que entraríamos numa segunda vaga, com tendência a ser mais grave que a primeira. Que a Covid-19 iria cruzar-se com a gripe e causar ainda mais problemas nos centros de saúde e hospitais, sobretudo com as pessoas mais vulneráveis. E que, até lá, o acumular de outras situações em atraso entupiria os serviços, adiando, ainda mais, consultas e operações. Mandava pois o bom senso que se criasse um sistema que agilizasse todos os processos. Criou-se? Não.

Bem sei que me vão dizer que cinco meses é pouco tempo para mudar tudo, para criar novos sistemas, para fazer com que todas as plataformas comuniquem entre si. Pois o problema está exatamente aí. Então o país que se diz na vanguarda da tecnologia, mais tech não há, websummits e tal, que até entra em guerra com os EUA por uma declaração mal interpretada do embaixador por causa do 5G e da ameaça que essa rede traz da China, não consegue o mínimo dos mínimos para desburocratizar toda a trapalhada que neste momento entope o Serviço Nacional de Saúde? Um sitezito, uma app que se encomende a qualquer startup que tanto valorizamos?

Vamos lá ver. Desde março que nos andam a dizer que há dois modelos onde os médicos e os serviços de saúde registam os dados da Covid-19, e é por isso que é preciso cruzar números e eles surgem de vez em quando com tantas discrepâncias. E que há muito tempo, na era p.C. (não é antes dos pc’s, é mesmo pré-Covid), que o problema está para ser ser resolvido e anda a ser tratado. Mas nem agora, que aconteceu algo de facto premente, em que vivemos a primeira grande pandemia dos nossos tempos, em que todos tivemos de aprender a viver de outra forma, em teletrabalho, em telescola, com vídeochamadas, zooms, chats, mil grupos de whatsApp e sei mais lá o quê, lhe foi dada máxima prioridade.

Que me desculpem, mas qualquer aprendiz de Rui Pinto, qualquer concurso lançado a uma escola para as turmas de tecnologia ou a uma universidade da área resolveria este problema grave. E, em vez de perderem horas a preencher papelada, que muitas vezes descuram — e bem — para tratar de salvar vidas, os médicos poderiam ter num simples tablet a ficha sempre atualizada dos doentes, que preencheriam com um simples touch e tornariam acessível a todos os que os substituíssem. E esses dados seriam transferidos automaticamente para o sistema. Para um único sistema.

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Peço mais uma vez desculpa, mas há uns anos que nos acenaram também com um um magnífico Portal da Saúde, onde tudo funcionaria online e maravilhosamente. Já o usaram? Experimentem. Tentem o mais simples, marcar uma consulta. Garanto-vos que até pode ficar tudo garantido informaticamente, mas se forem ao centro de saúde no dia e hora marcado baterão com o nariz na porta. Aliás, o centro de saúde nem sabe do que estão a falar. “Portal do quê?”, foi a resposta que tive por experiência própria. Da consulta ainda estou à espera.

Ora, diria eu ainda —  mesmo não sendo nem especialista em saúde nem em informática, apenas tendo de lidar com estas questões como uma qualquer cidadã — que, em tempos de pandemia, mandariam também as boas práticas que se libertassem os administrativos dos centros de saúde e os seus médicos de burocracia e papelada. E, sobretudo, que se poupassem as pessoas de se deslocarem a locais de propagação de doença, sobretudo os mais idosos e vulneráveis. E como na maioria dos casos do que se trata é apenas de pedidos de medicamentos e exames ou, agora nesta fase, da marcação da famosa vacina da gripe, parece-me existir também uma solução simples e eficaz. Um sistema em que todos os dias um médico perdesse uma hora a tratar dessas receitas pedidas online e as enviasse por mensagem ou email, ou de uma outra qualquer forma automática. Será assim tão difícil?

Ao contrário da hipótese de tornar a app StayAway Covid obrigatória, aqui não está em causa qualquer problema de liberdades e garantias, nem de proteção de dados. Esta é mesmo uma questão de proteção de pessoas em tempos de pandemia. E um grande avanço civilizacional.

Um exemplo pessoal, que dispensava reproduzir, mas que é ilustrativo de tudo o que se está a passar. A minha mãe tem 76 anos. Foi operada à coluna há mais de um ano. Deveria ter consulta de acompanhamento no hospital de Évora em março, seis meses depois, mas continua à espera porque devido à pandemia tudo foi atrasado. No centro de saúde local (felizmente, parece que há um ou outro no país que funcionam, devem ser aqueles que os governantes visitam) já teve entretanto três médicos de família diferentes. E conseguiu por favor duas consultas e uma outra porque era uma urgência. Cada vez que lá tem de ir, a dois quilómetros de casa, vai e volta de táxi. Só para pedir remédios. Deixa o pedido na secretaria. Ninguém atende quando liga. Volta e às vezes torna a voltar, só para saber se já tem a receita passada.

Depois de todo este tempo, o recurso foi, é claro, ir ao privado. Pagar. O médico, o neurocirurgião que a operou (via cheque-cirurgia, após espera de mais de um ano, e a 200 km do seu local de residência) pediu os exames pós-cirurgia que no público deviam ter pedido em março: uma ressonância magnética e um raio-x. Armei-me em Marcelo, tomei as rédeas da coisa. Comecei a ligar para o centro de saúde, para a ARS Sul, enviei mails. Queria algo simples: eu mandava por mail o pedido dos exames, eles devolviam-nos passados pelo médico de família pelo mesmo meio, ela pouparia duas deslocações, uma para os entregar outra para os ir buscar.

Consegui o primeiro contacto ao fim de uma semana, depois de dezenas de telefonemas e graças ao senhor do andar de cima que passou por favor às colegas do andar de baixo, por mais que a chamada teimasse em cair. A minha insistência acabou por resultar, mas ouvi queixas (presumo que para a companheira ao lado) de “que assim não podia ser”, era “muito trabalho”, “não davam conta”, “eles que pusessem mais pessoas”. Seguramente terão razão, pensei, mas lá  expus o meu problema, e lá disseram que sim, que iam tentar imprimir, e por no monte, porque só tinham uma “doutora disponível”, um estava de férias, e outra de baixa (ou o contrário, não fixei).

Fiquei de ligar uma semana depois. A saga do atendimento repetiu-se. Vinte chamadas depois, eureka, consegui, só para confirmar que os pedidos estavam mesmo no monte, mas ainda não assinados pela “doutora”, e ficar com a garantia de que o meu mail ficava registado num canto para mos enviarem de volta. Passou mais uma semana e meia (na semana passada não houve estratégia que resultasse para que alguém atendesse o telefone) e esta segunda desisti às 34 chamadas (só comecei às 14h e desisti às 17h30). Lá terá de ir ela, quando nem devia sair de casa, pedir de chapéu na mão e depois voltar e ainda agradecer como se fosse um favor que lhe fazem.

Sempre se disse que Portugal sofria de excesso de burocracia. Eu, por experiência própria, garanto que sofre de falta de vontade de a resolver. E que, com a pandemia em curso, se perdeu uma grande oportunidade para arranjar soluções simples para problemas que nem deviam existir. Quando voltarem a dizer que somos um dos países mais tecnologicamente avançados da Europa, vou mandá-los ir ao centro de saúde da minha mãe pedir uma receita ou marcar uma consulta. Se calhar nem é preciso. Vou mandá-los apenas ligar para lá.