1 Não, de facto como diz um camarada amigo, Pedro Nuno Santos não é conhecido como “calculista”: a precipitação não costuma conceder tempo ao cálculo e a imprevisibilidade não casa com a ponderação. Talvez não fosse porém isto que eu teria escrito com tanta assertividade sobre o actual líder do PS quando o conheci há cerca de um ano e meio, ainda ele não chefiava as tropas socialistas e já não era ministro. Conversámos pela primeira vez num gabinete da Assembleia da República para onde regressara como deputado e, da segunda vez, na grande sala da biblioteca. Tomei aliás de imediato boa nota de uma imensa popularidade: a amável troca de cumprimentos trocados entre Miranda Sarmento, então líder parlamentar do PSD que atravessava a sala, e Pedro Nuno Santos que escolhia onde se sentar, nada tinha de falsa. E pude medir essa popularidade quando à saída observei o tempo que vi ser necessário ao deputado socialista para atravessar os corredores do parlamento , tantas as interrupções à sua passagem: um cumprimento, um murmúrio, uma troca cúmplice de olhares, saudações cordiais, vinda das suas hostes — ou de grande parte delas – e de várias moradas.

A política é inseparável da expectativa e ela estava inegavelmente do lado de Pedro Nuno Santos, pelo menos dentro daquelas solenes paredes. Mas o (meu) ponto é este: no fundo ainda não começara nada de verdadeiramente sério para ele mesmo que parecesse: não comandara tropas, não deixara memória de “governante-fazedor” e, ao contrário da lenda, só na constelação socialista “se” achava que ele fora bom ministro. O país chocara-se com as leviandades da TAP, não havia uma marca na ferrovia nem na habitação; o então Primeiro Ministro António Costa havia-se enfurecido com o anúncio do local do novo aeroporto, “escolhido” unilateralmente pelo seu ministro das Infraestruturas e estampado em Diário da Republica com o total desconhecimento do chefe do Governo. Etc. Haveria mais exemplos mas não interessavam a uma considerabilíssima parte do PS que tinha nele os olhos postos enquanto a vasta plateia parlamentar de S. Bento parecia olhá-lo – e segui-lo – com curiosidade. Numa palavra, era popular e isso ia bastando a uns e espantando os outros.

2 E quanto a mim, das duas vezes em que conversámos – antes e depois do verão de 2023 –, Pedro Nuno Santos, atencioso, desenvolto, popular e radical, surgiu-me ainda como um político seguro mas talvez eu estivesse a confundir vaidade com segurança: o mundo era dele, a vontade também. Não havia ainda nessa altura nem arrogância, nem intempestividade, nem a hesitação onde ele parece tropeçar hoje com facilidade e frequência. Pelo contrário: “um dia iria ganhar o PS”, sim “não tinha disso a menor dúvida”. Subentendido: quando Costa caísse ou saísse, era uma questão de tempo. E sim, claro “tinha o partido com ele”; ah “e faria uma nova geringonça”, também não duvidava. Estava aliás tão certo que, com um sorriso absolutamente convicto, se dispensava de falar comigo sobre a famosa negociação (o pretexto do meu pedido de encontro) que desaguara no casamento de conveniência do PS com comunistas e bloquistas.

Ora “se ele iria repetir todas essas negociações quando ganhasse a liderança socialista e depois a do país em eleições legislativas” (“fossem quando fossem”), como poderia contar o passado? Não podia de todo (“seria até muito despropositado”) entrar em confidências públicas sobre se fora mais espinhoso negociar com A ou com B, ou contar-me quem dissera o quê no curso das negociações do PS com o PCP e o BE.

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Insisti, telefonei, troquei sms, cheguei a mandar um questionário, mas “não” .

Percebi: a possibilidade do remake de um acordo tripartido com as esquerdas radicais vetava-lhe qualquer publicitação sobre tão cara matéria: era uma das suas linhas vermelhas de então. Nada publicitar, esperar. Novo subentendido: ou não lhe iria tudo um dia parar à mão? Alguém enfim que não ignorava o poder da sedução e da ambição, praticando uma e outra enquanto esperava a sua hora, e sem sombra de remorso com o que (não) fizera nas Infraestruturas, nem em lado nenhum. E que com boas maneiras cortou cerce a minha curiosidade e o pedido profissional que eu lhe fora fazer.

Nunca mais esqueci esta troca de impressões, nem a minha própria impressão: conversara com um navegador da política, cuja simpatia não disfarçava a sua genuína radicalidade política e que, sendo determinado, estava mais centrado em obter o comando da barca do que nos instrumentos de uma boa navegação. Os ventos diriam, não as bússolas.

3 Um dia – mais cedo do que ele antecipara – a maior fornecedora de surpresas que é política foi de novo generosa: António Costa saiu da cena – alguma vez saberemos porquê? –, Pedro Nuno Santos entrou e sentou-se no Largo do Rato. Não – como ele julgava – com todo o partido atrás: o “aparelho” ia na sua mochila, mas os costistas continuavam vivos e a querer que se soubesse. Apesar da sua entronização no congresso socialista do início deste ano, Pedro Nuno Santos teve por exemplo que sinalizar as suas discordâncias com Fernando Medina, também conhecido – ainda hoje – como o “delfim” de Costa, sobre os respectivos (des)entendimentos sobre finanças públicas. Ou seja, tudo menos deixar o Delfim à solta a ensinar o novíssimos líder sobre o bom uso dos dinheiros públicos.

4 Vieram as eleições, o PS perdeu por pouco e a seguir começou a perder por muito: o sorridente, confiante e seguro deputado socialista do verão de 2023 despediu o sorriso e parece ter-se zangado de vez: com o mundo, a vida, o jogo partidário, com ele próprio. E, submergido pela pressão, a responsabilidade de ter de decidir, a divisão interna, começou a fazer política (irremediavelmente?) mal. Nunca nada parece ir-lhe de feição; nada é sempre a mesma coisa, o caminho é sempre feito de curva e contra- curva: umas farão naturalmente parte da estrada de um líder da oposição, outras são inexplicáveis (receios? desnorteios?).

A passagem de uma candidatura ao poder para a sede do poder às vezes tem destas coisas: muita incerteza e pouca ossatura. Desaba, como os soufflés.

É o caso?

5 O outro chama-se Luís Montenegro e o mundo entretinha-se em certezas sobre o seu não-destino: era como se estivesse só interinamente a tomar conta do PSD e de empréstimo. Não era verdade que iria perder as eleições europeias que se realizariam meses depois dele ter sido eleito e ser despedido logo a seguir com aquela voracidade com o que o PSD sempre se desfez dos seus quando foi “preciso”? Ia, que eu lembro-me.

Mas também me lembro de ter achado subestimação a mais: tendo acompanhado de perto algumas frentes de combate dos anos da troika, recordo-me bem de um general parlamentar chamado Luís Montenegro, ágil, politicamente hábil, paciente, insistente e omnipresente no hemiciclo de S. Bento, onde liderou em condições duríssimas a coligação PSD/CDS. A vitória da mesma coligação nas eleições de 2015, contra todos os ventos e todas as mares da época, tem também alguma coisa a ver com ele: com a convicção de aço com que respondia à fúria inclemente das esquerdas, ou com a paciência de renda com que acalmava dúvidas, iras e amuos no CDS. Não foi fácil mas foi bem feito. E talvez não fosse para qualquer um.

Nada do que acabo de recordar me impede porém de dizer que também eu me surpreendi – e surpreendo – com alguns passos, atitudes, decisões, escolhas do actual Primeiro Ministro. Melhor será dizer – porque melhor o resume – com o modo como Montenegro entende e depois pratica a política.

Há a sobriedade, o recato na praça pública, uma invulgar desnecessidade de pré – avisar ou sequer de avisar medidas, nomes, escolhas, decisões antes do (seu) tempo. Não estávamos habituados. Nem ao uso de um bom senso que nele chega a ser quase desarmante. Isto pelo lado da forma. Depois há o parlamentar e a sua alta definição nestas lides. Boa capacidade de expor e defender o seu rumo, autoridade serena, fluidez no discurso (embora sempre prolixo), velocidade nos remoques com as outras bancadas. Um surfista.

6 Mas… Mas depois não sabemos – eu não sei – se haverá um bom chefe do Governo. Um magnifico parlamentar não garante um bom primeiro ministro. Luís Montenegro, elenca e produz medidas, mas medidas não são reformas. Sendo muito louvável cumprir politicamente as promessas eleitorais do PSD, o país precisa de mais do que aquilo que nelas coube. E é aí que residem – ou podem vir a residir – dúvidas ou reticências.

Mexeu-se no fisco? Sim, um bocadinho. Na burocracia? Talvez se venha a mexer. Na diminuição das vergonhosas desigualdades a vários níveis? Mexeu-se. Nas empresas era porém preciso ter feito mais e ido mais longe. Prestado muito maior atenção. É a partir delas como únicas criadoras de riqueza que se pode aspirar a vidas menos baças, equilibrando desigualdades que demorarão a esmorecer. Empresas e empresários continuam porém mal amados e sempre olhados com o viés de serem “dos ricos”. Pouco se ouve, com a veemência e a força de que Portugal careceria, pronunciar palavras como “criação de riqueza” ou apelar à “produtividade”. A quem ocorre fazer disso uma indispensável frente de combate, mobilizando o país para a vital importância dessa indispensabilidade?

Vão-se subindo uns degrauzinhos mas nunca a íngreme escadaria que seria preciso galgar para sermos mais produtivos, menos pobres, mais concorrenciais, menos envelhecidos; mais empenhado, menos instalados, mais comprometidos, menos cepa-torta. Mais pátria de nível europeu, por muito que a “Europa” quase agonize diante dos nossos olhos e o mundo trema de incerteza por debaixo dos nossos pés.

7 Só um distraído achará que Montenegro, por ter o orçamento viabilizado, embarcará num mar de rosas. Vai haver muito espinho. Cedeu demais nas negociações com o PS num primeiro tempo e no segundo que agora (re)começa, vai ter esse mesmo PS à perna só a dificultar-lhe a vida. É preciso mostrar serviço as tropas.

8 Um, Pedro Nuno Santos, exaltar-se-á, hesitará, exagerará , far-se-á caro. É um radical, expõe estados de alma, e talvez comece a estar mais só do que se sabe ou ele aparenta. Acredita-se menos ele hoje do que há meses atrás. O país sabe-o embora o futuro a Deus pertença.

O outro, Luís Montenegro, é sensato, sossegado, reservado. Não age por impulso, detesta “novidades”, não é dono de rasgo. É um resiliente tranquilo que apurou a habilidade na luta política. O país percebeu.

Por razões muito diferentes das do seu adversário socialista também está mais só do que se supõe: precisaria de um núcleo duro, politicamente muito mais forte, mais arguto, mais experimentado. Tudo, ou quase, está, para o bem e para o mal, em cima dos ombros do Primeiro-Ministro.

Seja como for será com estes dois homens muito diferentes e à roda deles que gravitará a vida política social e económica de Portugal. Goste-se ou não deles, tenha-se ou não votado neles.

Há um terceiro que sobe e desce, como nos entretenimentos das feiras. Nunca lhe prestei grande atenção. Talvez esteja enganada, mas entretanto tenho-me poupado a despesa da observação.

PS: Que eu tenha notado – mas admito não ter visto tudo – o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério foi o primeiro membro da Igreja, logo na passada quinta feira, a dizer em nota do Patriarcado a sua “consternação” pela violência ocorrida na periferia de Lisboa. E também julgo que o único sacerdote a usar publicamente do plural na manifestação dessa “consternação”, mencionando “os envolvidos” nestes acontecimentos e “lamentando profundamente a perda de uma vida e os vários feridos que deles resultaram”. Haja alguém no vasto mundo da Santa Madre Igreja que reze e se condoa no plural.