O Governo de António Costa tem a possibilidade de ficar de novo na história das finanças públicas portuguesas, ao atingir o primeiro excedente orçamental desde 1974. Se não este ano, em 2019. O défice público de 0,92% do PIB, sem a despesa de capital irrepetível da CGD, transforma a possibilidade de um excedente orçamental em 2019 num objectivo até pouco ambicioso.
Antes de continuar vale a pena dizer que o número para o qual devemos olhar é 0,9% e não os quase 3% que foram determinados pela capitalização da CGD. O debate “entra não entra para o défice” é irrelevante. Teremos sempre de pagar esse valor e ele está na dívida pública, sendo esta que condiciona a margem de manobra orçamental e nos obriga a manter a política de rigor ou de austeridade como se preferir. Mas sendo o aumento de capital da Caixa uma despesa irrepetível, a base de partida para os anos seguintes em matéria de contas públicas é o défice de 0,92%.
António Costa e Mário Centeno, temos de o reconhecer, estão de parabéns. Conseguiram uma combinação óptima de estratégia política e de políticas económicas e financeiras. Claro que sem a conjuntura externa favorável esses objectivos não seriam alcançáveis. Mas não estragaram. Pelo contrário. Tiveram a arte de potenciar esses ventos e de conseguir acelerar o barco da economia, através da criação de confiança. Tudo isto foi feito ao mesmo tempo que se mantinha uma política financeira de austeridade no Estado, sem que ninguém reparasse nela ou alterasse as suas decisões de consumo ou de investimento por causa dela.
Eis alguns factos numéricos, usando os dados do INE:
- A carga fiscal, medida pela receita fiscal e contribuições para a segurança social ficou nos 37% do PIB, ligeiramente abaixo do ano do “enorme aumento de impostos” de 2013 (quando ficou em 37,1% do PIB), assumindo-se assim como a segunda mais elevada desde 1995.
- A tributação indirecta, onde está por exemplo o IVA e os impostos sobre o consumo, atingiu em 2017 um peso historicamente elevado (15% do PIB), quando a média desde 1995 é de 13,9%.
- A despesa corrente sem os juros da dívida pública – onde se destacam os gastos com pessoal e as prestações sociais – foi de 37,7% do PIB, menos 1,1 pontos do que em 2016 e correspondendo ao mais baixo valor relativo desde 2003.
- As despesas com os salários da função pública registaram o mínimo histórico de 11% do PIB.
Estes quatro grandes números são suficientes para perceber que a redução do défice público é explicada, obviamente, pela recuperação da economia, mas também por medidas de rigor na despesa pública, o que significa uma actuação bastante pró-activa de Mário Centeno, e pela manutenção da carga fiscal, redistribuída de uma forma que não é sentida pelos contribuintes. Os fiscalistas tradicionais chamam-lhes “impostos narcotizantes” e os economistas tradicionais criticam-nos em geral por serem regressivos – ou seja, pesam mais sobre os rendimentos mais baixos do que sobre os mais altos. Mas são sem dúvida os mais eficazes, quer do ponto de vista da colecta, quer na perspectiva da gestão política dos governados – ninguém repara que se está a dar com uma mão e a tirar com a outra.
O resultado mais importante de 2017 é sem dúvida o das despesas com o pessoal pelo que nos diz da sustentabilidade desta redução do défice público. E diz-nos que esta redução do défice, contrariamente ao que aconteceu no passado, pode ser mais sustentável do que poderia parecer.
A explicação para esta descida do peso dos gastos públicos com salários pode ser encontrada neste texto de Sérgio Aníbal que tem como referência o último relatório do Conselho das Finanças Públicas. O crescimento da economia é apenas um factor que justifica essa redução. Os outros, que permitem antecipar que esta tendência se mantenha, são a entrada de funcionários que ganham menos do que aqueles que saem para a aposentação e um rácio de quatro contratações por cada cinco saídas. E são estes dois últimos elementos que, estando nas mãos de decisões políticas e não de conjuntura económica, permitem esperar que esta redução do défice seja mais sustentável.
A ironia do destino é estarmos agora, com um Governo apoiado pelo PCP, PEV e Bloco de Esquerda, a corrigir um aumento das despesas com pessoal na função pública que tem as suas origens no início da década de 90 do século XX, com o Novo Sistema Retributivo da Função Pública (que Miguel Beleza designava como “ruinoso”) e que garantiu a segunda maioria absoluta a Aníbal Cavaco Silva.
Claro que a durabilidade deste controlo das contas públicas depende em grande medida da capacidade de António Costa resistir à expectável onda de reivindicações, que já se está a sentir no discurso político, e à tentação de o PS usar as contas públicas para obter a maioria absoluta no próximo ano de eleições legislativas. A história eleitoral portuguesa mostra bem que se ganham facilmente eleições simplesmente com aumentos salariais da função pública e subida das pensões de reforma.
Com estes resultados orçamentais, o Governo tem uma oportunidade única de começar a reinvestir nos serviços públicos, em equipamentos mas especialmente em organização, ao mesmo tempo que começa a reduzir a enorme carga fiscal que o país ainda carrega. Mantendo a trajectória de descida do défice.
António Costa e Mário Centeno, para já, estão de parabéns. O primeiro-ministro pela capacidade política que tem revelado, demonstrando que se atingem mais facilmente os objectivos da austeridade sem nos confrontar com a verdade dura da falta de dinheiro. O ministro das Finanças por ter sido cúmplice dessa estratégia e por ter tido a confiança de António Costa para gerir com mão de ferro o dinheiro dos nossos impostos.
Nada está garantido, mas estamos hoje muito mais perto de controlar as contas públicas do que alguma vez estivemos no passado. Há uma luz ao fundo deste túnel orçamental em que temos estado metidos desde o início do século XXI. Esperemos que não se estrague tudo outra vez. Resta-nos a esperança de não ser possível destruir os progressos alcançados, por causa da dimensão ainda muito elevada da dívida pública.