Ainda Ronaldo. Há uns anos era acusado, com aquele prazer acerbo que temos em atacar os melhores dos nossos quando não se mostram à altura de padrões concebidos no sofá, de não render na seleção o que rendia nos clubes. Das várias explicações possíveis para o facto, a mais benevolente era a de que na seleção Ronaldo não era seguia no andor dos talentos que o carregavam nos clubes. A outra, mais maldosamente lusitana, era a de que as conquistas na seleção não lhe interessavam tanto como as da entidade patronal, por simples razões pecuniárias. Que o dinheiro seja importante para Cristiano Ronaldo (e para mim e para si, caro leitor) não duvido. Que alguma vez tenha sido esse o motor dos seus desempenhos em campo, nem me parece discutível. É apenas absurdo. Ronaldo corre atrás de ser o melhor da história deste desporto. É um repto individual que ele aprendeu a conciliar com o coletivo, embora em noites como as de ontem, em que Ronaldo é general de exército de um homem só, este maravilhoso desporto coletivo se assemelhe mais do que nunca a um desporto individual.
Na conferência de imprensa, um jogador tão talentoso como Bernardo Silva era todo ele vergonha e gratidão, como se ele e os outros colegas fossem os beneficiários imerecidos do acaso cósmico que os pôs a jogar ao lado de Ronaldo: “Sobretudo um grande Cristiano [o que fez a diferença]. Há que dar-lhe o mérito. Esteve ao seu melhor nível e quando ele está ao seu melhor nível tudo é possível.” Estar ao melhor nível é um eufemismo. A única comparação possível é a de um general a carregar os soldados feridos pelo campo de batalha, com morteiros a caírem-lhe ao lado e balas a assobiarem-lhe aos ouvidos, enquanto afasta o inimigo com tiros tão precisos como os de um sniper. Ontem, quando Nacho desenhou o terceiro golo, a primeira coisa que pensei foi: “lá vai o Ronaldo ter de marcar mais um.” A solução não estava na equipa, na tática, no treinador. Estava em Ronaldo, esse extra-terrestre graças ao qual vivemos há anos acima das nossas possibilidades futebolísticas.
Outro dos grandes prazeres do Mundial é que não há espaço para ideologias dogmáticas sobre o que deve ser o futebol. Xavi Hernández, enorme futebolista e lamentável guardião de uma pretensa pureza futebolística, deve assistir com mágoa atenuada pela prodigalidade qatari aos jogos do Mundial em que tanto podemos admirar o jogo de posse da Espanha como o brilhantismo de Ronaldo e menos dez. Tanto podemos deliciar-nos com uma recepção de bola de um jogador marroquino cujo nome esquecemos como podemos saudar a tenacidade defensiva dos iranianos cujos nomes não queremos lembrar. Podemos agradecer a audácia de Deschamps em apresentar um trio de ataque com Mbappé, Dembelé e Griezmann e, ao mesmo tempo, sentir como uma terrível injustiça a derrota da Austrália, ainda por cima atirada ao tapete por um daqueles golos de Charlot. Podemos achar que a Dinamarca não merecia ganhar e, simultaneamente, pensar que sem a vitória dos dinamarqueses não teríamos o drama de Cueva, que abandonou o relvado em lágrimas por ter falhado um penalty. Podemos vibrar com a entrada em campo da Argentina, apesar de a mais bela camisola do mundo só se ver nos adeptos na bancada, e reconhecer, não obstante, o mérito dos islandeses.
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