Em 1 de Outubro, o Irão ataca Israel com mísseis balísticos. No mesmo dia, o Secretário-Geral das Nações Unidas emite uma declaração «sobre os mais recentes ataques no Médio Oriente», em que afirma «condeno o alargamento do conflito do Médio Oriente, com escalada atrás de escalada. Isto tem de parar. Precisamos absolutamente de um cessar-fogo».

A mentira começa a ganhar corpo logo no título. Há ataques, mas nada se diz sobre os seus autores nem sobre os seus alvos. O mesmo se passa com o «alargamento»; ninguém alarga, nem se indica para onde é alargado. A declaração fica-se por uma noite onde todos os gatos são pardos, dissolve no abstracto os actos concretos.

Como estado de alma, nada a dizer; é o velho e relho lamento anémico e inútil pela iniquidade geral do mundo. Só que o Secretário-Geral condena. Mas condenar implica reconhecer a imputabilidade concreta de actos. Uma vez que estão ausentes do texto, a declaração não pode condenar nada nem ninguém. É evidente que o Secretário-Geral das Nações Unidas se assegurou de antemão das condições que impossibilitavam uma condenação. Munido de uma cartola de fundo falso, tira dela o que muito bem quiser lá meter. Criticado, o Secretário-Geral foi acoitar-se por detrás de um should have been obvious. Tão óbvio, presume-se, que nem era preciso dizê-lo. Estava implícito.

A recém-descoberta da dimensão tácita não pode ter sido motivada por lapso ou incapacidade cognitiva, dado que o Secretário-Geral se entrega à mais histriónica incontinência verbal de cada vez que se pronuncia sobre as alterações climáticas, ou sobre outras causas que, por julgar que lhe trazem o favor público, corteja descontroladamente.

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Nesse tema, como noutros, a retórica flui ao ponto de se neutralizar. À força de querer inscrever sofrimentos postiços na carne alheia, o Secretário-Geral opera como uma queimadura de terceiro grau: suprime a dor pela destruição das terminações nervosas.

O vício da grandiloquência não é, aliás, de agora. Anos antes, quando tão-somente era primeiro-ministro de Portugal, António Guterres parlapateava «Quero que fiquem todos a saber que se este governo for colocado ‘entre a espada e a parede’ preferirá a espada» ou «Roma não paga a traidores.» Já então bem pequena era a rã, mas muita farronca fazia.

Manteve o hábito – excepto quando se trata de Israel. Em todas as suas declarações, os ataques que vitimam Israel são despachados numa frase sem adjectivos nem advérbios (salvo quando o adjectivo se destina a evitar a qualificação do agente, o exemplo clássico consiste em classificar os actos do Hamas como atrocious ou horrific para, muito deliberadamente, evitar qualificar a organização como terrorista, como, note-se, fazem a União Europeia e os Estados Unidos da América). Feita a referência exculpatória, o Secretário-Geral avança pormenorizando (e até remetendo para o terror vago beyond imagination) as mortes e os danos causados por todas as acções militares de Israel.

Neste capítulo, nunca se abriga junto de um should have been obvious. Pelo contrário, não se coíbe de gastar palavras em contar extremos de golpes feros. A condenação do ataque iraniano foi uma mentira. Mas a mentira reclama o seu salário, e o seu salário são mais mentiras. Servir-se do implícito, dada a sua folha de serviços em matéria de uso e abuso do fortissimo, cria uma excepção contra Israel.

Vem mostrar, aliás, que a antiga pergunta não envelheceu. Nações Unidas – unidas contra quem? É o óbvio e o implícito que o Secretário-Geral tem de justificar. O óbvio e o implícito não são uma resposta, suscitam uma nova pergunta. Porquê neste caso e só neste caso?  Como um vulgar mentiroso, António Guterres tapa mentiras com mais mentiras. É um explícito intrujão – it should have been obvious.