Quem me lê já está habituado (ou farto, conforme a perspetiva) às referências aos sistemas que estão sempre a crescer, sistemas inflacionários. Normalmente, sobre economia, são os que mais influência têm na nossa vida e sobre os quais mantenho uma obsessão “investigadora” quase doentia. Desta vez, no entanto, vou falar de um sistema mais simples. Esse sistema é a pilha de areia.

Aproveitemos os dias mais frios para recordarmos as vezes que, sem nada de mais importante, fazíamos montes de areia deixando escorrer um pequeno fio da mão no topo do monte. O monte vai crescendo, mas não de forma bem comportada. O sistema composto pelo monte e pelo fio de areia que vai deixando escorrer da mão, vai mudando de comportamento à medida que o monte cresce. Períodos em que cresce continuamente em altura, alternam com avalanches de areia pelas vertentes do monte, avalanches essas de dimensão muito variável.

Nesta altura está a perguntar-se quem é o maluco que perde tempo com isto. Na verdade, três malucos o fizeram no final dos anos 80 do século passado; os físicos Per Bak, Chao Tang e Kurt Wiesenfeld resolveram estudar a física de um sistema bem mais familiar que partículas subatómicas ou que os confins/nascimento do universo. O modelo físico, chamado surpreendentemente de “pilha de areia”, serve de base a um fenómeno próprio de sistemas inflacionários que se batizou de “criticalidade auto-organizada” e é hoje observada em “oscilações” de vários sistemas bastante familiares como bolsas de valores ou placas tectónicas. As aspas em oscilações devem-se ao facto de não serem oscilações, serem avalanches, cujo tamanho pode ser bastante grande quando comparado com as dimensões do sistema. Avalanches em bolsas chamamos-lhes “crashes” e nas movimentações das placas tectónicas chamamos-lhes “terramotos”, isto para dizer que são eventos até bastante comuns e que têm um impacto diferente daquilo a que chamamos normalmente de oscilações.

Outro sistema que está sempre a crescer de forma semelhante é o nosso sistema de comunicação com os outros seres humanos e, graças a essa extraordinária invenção chamada “rede social”, hoje temos possibilidade de “ver” a parte mais importante do sistema, a comunicação entre os nós da rede: as pessoas. E qualquer pessoa que tenha, de alguma maneira, estudado sistemas que apresentam o tipo de comportamento que as pilhas de areia apresentam, vive fascinado com a forma como a comunicação cresce, alternando períodos de acalmia e avalanche, nestes sistemas com mais de mil milhões de pessoas interagindo entre si. E, para além daquilo que é fascinante do ponto de vista físico e matemático, temos o adicional de estarmos a falar de redes em que os nós são pessoas.

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Muita gente dirá hoje que as redes sociais são o reflexo da sociedade, mas é um pouco mais forte que isso: as redes sociais SÃO a sociedade. Simplesmente, hoje, devido à materialização computacional das relações, conseguimos ver a rede, a forma como cresce e a forma como se propagam as avalanches. Antes, as redes eram as mesmas, só que as dificuldades de comunicação faziam delas mais limitadas. Mas os boatos do liceu corriam como hoje correm as “fake news” no Facebook e as indignações morais das nossas vizinhas corriam entre elas como as indignações no Twitter correm atualmente.

A boa notícia é que ainda se sabe muito pouco da previsibilidade destas avalanches. Sabe-se que vão acontecer, não se consegue saber como, nem quando. Mas, do ponto de vista fenomenológico, são interessantíssimas. E vou pegar em dois casos recentes, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto e as agressões à porta do Urban Beach. Num e noutro, a perceção geral é que as reações derivaram do impacto que as notícias tiveram nas redes sociais e o impacto é real. No primeiro caso, o Conselho Superior de Magistratura anunciou avaliar uma coisa na qual, já se sabe, não vai ter qualquer influência; num caso em que, aparentemente, se seguiu regularmente todos os passos. No segundo caso, detiveram-se pessoas por homicídio na forma tentada naquilo que será, de acordo com os media, o trigésimo nono caso nos últimos tempos sem que os anteriores 38 tivessem qualquer consequência, quanto mais uma acusação desta gravidade. O que mudou para estes casos terem um impacto que nenhum dos outros semelhantes tiveram?

Nada. Todos os outros anteriores, de alguma maneira, afetaram nós da rede social e esses nós falaram com outros nós criando pequenas avalanches que não chegaram a ter um impacto relevante. Mas há nós, que sendo “tocados” pelo caso, geram grandes avalanches. Note-se que em ambos os casos, os aspetos laterais foram importantes. Um porque o filme mostra um pontapé na cabeça, outro porque faz menção à Bíblia no acórdão. E podem ter sido esses aspetos laterais que favoreceram a propagação, mais que os casos em si mesmos, por serem esses os aspetos que as pessoas, com mais influência social, valorizaram mais. E tanto é verdade que têm mais influência social, que os casos propagados por elas foram aqueles que tiveram consequências de facto.

Como encarar esta geometria, então, naquilo que nos interessa, isto é, qual a minha (sua) influência na sociedade? Não ficou reduzida? Não, pelo contrário. Como disse antes, a rede é a mesma, a qualidade das comunicações é que mudou. O facto de alguns temas, que antes não tinham qualquer impacto, passarem a ser importantes na reação que o estado tem a eles, deriva, em primeira mão, do facto da sua influência na sociedade estar a crescer. Recordemo-nos que há 3 anos, a notícia dos jornais online à segunda-feira era aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa tinha dito no domingo. E hoje é aquilo que Luís Marques Mendes disse. Sim, nada de geométrico ou fundamental mudou, essas pessoas são influentes por causa da “pilha de areia” que continua a crescer. Mas a sua influência decresceu porque a sua atenção à televisão tem decrescido e tem dividido a sua atenção sobre quem lhe fornece a informação. Se antes tinha que entregar dinheiro antes de fazer a escolha sobre o jornal que lê, hoje pode ler todos e rejeitar aqueles que não quer ler. E a probabilidade de ser o meu caro a meter a notícia que provoca a avalanche não é nula, como a jovem que filmou o caso do Urban Beach lhe pode comprovar. Note-se a quantidade de vezes que a notícia do jornal é “corre as redes sociais…”.

Mas, mais! Como a realidade lhe diz todo o santo dia, a ideia de um-homem, um-voto é hoje uma enorme anedota, como sempre foi. Repare como é perfeitamente irrelevante aquilo em que vota porque basta uma greve de professores, uma manifestação de taxistas ou outra forma de protesto de algum grupo mais influente e o seu voto já foi mandado para as profundezas do oblívio até que, por razões de legitimação de influências, lho vão pedir novamente. A D. Ermelinda de Mogadouro que não tem Internet, nem imagina como mexer num computador, vai continuar a ter a influência que sempre teve na sociedade. Vai continuar a falar com as vizinhas sobre os assuntos da rua dela e assim se encerra a sua importância social, ainda que as leis digam que o voto dela vale tanto como o meu.

Por isso, a democracia tem sido otimizada pelo crescimento das redes sociais. Aquilo que cada um de nós pode influenciar e a probabilidade de gerar uma avalanche cresceu. Poderá parecer um pleonasmo, mas a expressão correta é “democratizou-se”. Dir-me-ão que não é uma verdadeira democracia porque as pessoas não têm o mesmo poder, umas influenciam mais o poder que outras. Sim, e querem descrever-me o que se passa hoje? Aquilo que as redes sociais trouxeram foi o acesso a um número de pessoas cada vez mais numeroso à influência de decisões pela geração de avalanches de informação. Onde antes as dificuldades de comunicação faziam com que a opinião do Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa (por exemplo) fosse distribuída pela casa das pessoas sem alternativa, hoje é distribuída juntamente com a opinião do Sr. José Silva, reformado do exército. Sim, a opinião do comentador de serviço do canal de televisão continua a ser dominante. Mas a do reformado deixou de ser irrelevante, o que faz da opinião do primeiro menos dominante, e passa a ser provável que possa mesmo influenciar todo um país.

A democracia morreu, então? Não, está finalmente a sê-lo. Deem um Facebook a todos!

João Pires da Cruz é PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer