A morte de Odair Moniz na madrugada do dia 21 de outubro no bairro do Zambujal foi um acontecimento trágico. O confronto entre um agente da polícia e um morador termina com o falecimento deste, baleado mortalmente. A morte aos 43 anos, independentemente da sequência de acontecimentos que a ela conduziu, é dramática. Deixa três filhos cuja vida será ainda mais difícil.
A revolta espalhou-se no bairro e pelos bairros vizinhos, levantando um movimento de destruição de bens públicos e privados, de uma forma espontânea, mas também organizada. São incendiados automóveis, caixotes de lixo e mesmo autocarros. Um cocktail “Molotov” atirado para dentro de um autocarro atinge o motorista, Tiago, que fica gravemente queimado. Não é necessário dizer que nem este trabalhador, nem os proprietários dos veículos destruídos, têm qualquer relação com o drama do Bairro do Zambujal. E que a ação foi premeditada, mesmo que o seu objetivo pudesse não ser o de o atingir.
As reações polarizaram-se de imediato em dois extremos. Um, protagonizado pela associação SOS Racismo, o movimento Vida Justa, e uma parte da esquerda política, acentuou a brutalidade da intervenção policial, e a cultura de impunidade que atribuem às polícias. Em regra, encontrou nas condições de vida dos bairros como o Zambujal a razão para a destruição que se seguiu. Outro, protagonizado verbalmente pelos dirigentes do Chega, e por uma parte da direita política, acentuou a necessidade de uma ação rigorosa por parte da polícia, incluindo o emprego de armas de fogo, como única forma de impor a ordem. E que qualquer processo de responsabilização da polícia deve ser evitado. Ambos exigiram o apuramento rigoroso dos factos e das responsabilidades, mas os dois extremos já fizeram o seu julgamento.
Uma outra situação evoluiu de modo paralelo: a Presidência da República apresentou um voto de pesar pelo falecimento de Camilo Mortágua. Trata-se de uma figura pública para aqueles que viveram a época anterior ao vinte e cinco de abril. O assalto ao Santa Maria coordenado por Henrique Galvão, em que Mortágua participou e que lhe deu na altura alguma projeção nacional, gerou na altura uma verdadeira comoção. A reação das redes sociais foi quase imediata: multiplicaram-se as mensagens a lembrar que esse acontecimento também tinha uma vítima, o terceiro piloto do Santa Maria, que o próprio Henrique Galvão considerou que tinha caído nobremente no cumprimento do seu dever. E que ele merecia ser lembrado na mesma altura.
O Presidente da República tem um papel muito importante nestas situações porque a sua obrigação primeira é a de manter a unidade dos portugueses, tanto nos acontecimentos de todos os dias, como na leitura que fazemos do passado. Hoje, todas as suas afirmações são seguidas com atenção, à procura de deslizes, ou de segundos e terceiros sentidos, na esperança de se alimentarem polémicas. Ao fim de alguns dias, em que evitou deslocar-se ao Bairro do Zambujal, Marcelo Rebelo de Sousa contacta a mãe do Tiago e quase ao mesmo tempo realiza “visitas informais” tanto à esquadra da PSP da Amadora como a familiares de Odair Moniz. Apesar da procura de equidistância, sucedem-se os protestos de todos os lados.
A radicalização está a levar a melhor. Quem olha para um lado do problema esquece o outro. E muitas das questões que podem evitar desgraças futuras estão completamente fora da discussão pública: não pode a polícia ter melhores instrumentos para impor a autoridade do que a “lei da bala”? É verdade que existem vários bairros onde a polícia não entra? É possível combater os gangs organizados ao mesmo tempo que se protegem as famílias mais carenciadas que vivem em bairros sociais? Têm as policias os meios necessários para defenderem a segurança deles e dos cidadãos?
A crispação política, aliada ao que penso ser uma multiplicação de “julgamentos populares” na televisão, muitas vezes confundidos com comissões parlamentares de inquérito, está a cercar a presidência de forma progressiva e inexorável. Mas um presidente representa todos os portugueses e manter a coesão tem de ser o seu principal objetivo. Resistimos, como país, a inúmeras crises, mudámos de regime várias vezes, construímos e desconstruímos um império com poucos recursos e muita alma. Mas esta herança é bem mais frágil do que parece. A memória é continuamente desvanecida pela globalização e parcialmente apagador pela informação mediatizada.
Aproxima-se o final do segundo e último mandato do Presidente. Dada a mistura de períodos luminosos de empatia e humanidade, com outros mais escuros e preocupantes de autorreferenciação, a equidistância que parece querer promover não está a ter realmente efeito.
Qualquer que seja a avaliação que cada um de nós faça, temos de nos preocupar. A verdade e a mentira misturam-se bem melhor do que a água e o azeite e estamos muito perto de viver num mundo onde cada um tem o seu próprio universo, e a comunicação entre estes é muito fragmentária. Não se conhece nenhuma alternativa mais segura para a vida das pessoas do que a comunidade nacional, e é necessário preservá-la. Só ouvindo e compreendendo todos os pontos de vista teremos um futuro comum.