Foi há mais de meio século, nos primeiros anos 70, quando ele começou a colaborar na Política, que conheci o António Marques Bessa.

Era uma cabeça privilegiada, uma inteligência lúcida, com grande sentido de humor; um espírito crítico voltado, já então, para temas aqui quase desconhecidos – a circulação das elites, a Etologia, a Geopolítica. Mas, acima de tudo, era um homem livre, um espírito liberto de receios, de conveniências, de cálculos, de reverências; um nacionalista realista, com uma concepção do mundo assente em muita leitura e alguma experiência.

Eramos uma minoria político-ideológica, uma minoria de direita nacional revolucionária que procurava sínteses entre a nação – que nesse tempo era também o Império – e princípios de solidarismo e justiça social, que pouco tinham a ver com a ordem estabelecida. Só mais tarde nos daríamos conta que estávamos numa batalha de antemão perdida contra os ventos da História.

Os ventos de cá também não nos eram, então, favoráveis, entre a abertura europeísta da ala liberal-chique do Regime, o imobilismo da ala conservadora e uma frente de esquerda que ia do radicalismo maoista e trotskista e do clandestino e ortodoxo PCP às várias famílias do Reviralho tradicional. Mas isso não nos demovia.

Quando as questões corporativas militares trouxeram o golpe de Estado do 25 de Abril, que eutanasiou o Estado Novo, as várias vanguardas esquerdistas lançaram-se à conquista do Estado.

Nós, os da Direita que não era do Regime, estávamos naturalmente no topo das listas de “suspeitos” que os nossos condiscípulos antifascistas faziam o favor de fazer chegar ao COPCON. E não éramos só “suspeitos” porque desde o dia 26 de Abril que procurávamos, de facto, salvar o que valesse a pena ser salvo e que pudesse ainda salvar-se dentro do novo quadro democrático e de competição partidária proclamado pelo MFA e pela Junta de Salvação Nacional.

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Quando a esquerda radical e os seus aliados no MFA, percebendo que em democracia talvez não conseguissem os seus objectivos, deram os golpes do 28 de Setembro e do 11 de Março, com a cumplicidade dos democratas “antifascistas”, a neutralização pela proibição e pela prisão das forças políticas da Direita passou a ser efectiva.

O António Marques Bessa, que aderira ao Partido do Progresso, foi dos que escaparam à prisão no 28 de Setembro e conseguiram ir para Madrid. Nada o perturbava: “Oh meu amigo, eu e o Nogueira Pinto (o António optava sempre pelo apelido quando falava de nós aos outros) éramos das direitas em faculdades dominadas pelas esquerdas, de modo que não temos medo de nada e estamos preparados para tudo!”

Em Madrid, participou activamente na resistência, mas não parou de investigar e de escrever, e publicou, com Juan Vargas, um Diccionario Politico para Occidente, em que também colaborei.

Esse tempo de exílio foi um tempo em que aprofundámos a nossa amizade; escrevemos em parceria, no Verão de 1977, a Introdução à Política. Dividíamos os temas, escrevíamos durante o dia e, à noite, depois do jantar, o António vinha ter a minha casa e harmonizávamos e depurávamos o texto, até de madrugada.

O António foi das pessoas mais divertidas e com maior sentido de humor que encontrei na vida: um humor acutilante, vicentino, camiliano, desabrido que não poupava nada nem ninguém e muito menos as pompas e circunstâncias do meio universitário, as hipocrisias, as intrigas, as invejas, os golpes baixos, sob as vestes e insígnias da respeitabilidade académica. Não posso esquecer que foi ele, com a sua amizade teimosa, persistente e inteligente, que desmontou a encapotada “proscrição inquisitorial” que me bloqueou o doutoramento durante anos.

Pensamento e obra

Olhando para alguns dos títulos publicados por António Marques Bessa, não é difícil entender o sentido do seu pensamento e dos seus interesses: o estudo da Política, atestado pelos Dicionários de Política e pela Introdução à Política e o tema da Utopia, que esteve no cerne do seu pensamento crítico, associado, como quase tudo nele, a um lado lúdico, neste caso à ficção científica, onde abundavam as utopias e as distopias. O António era, como muitos da nossa geração, um fanático da Scfi: lera centenas de volumes e sabia outros tantos enredos com precisão. Vivendo na segunda metade do século XX, contemporâneos dos horrores do comunismo nas suas versões soviética, maoista e terceiro-mundista (e até do breve ensaio doméstico de 74-75) eram sobretudo as distopias que nos interessavam.

O António era daqueles que, como José António Primo de Rivera, considerava Rousseau um homem nefasto, com a sua teoria do “bom selvagem”, do homem naturalmente bom, uma convicção comum aos iluminados do século XVIII que, para criticar os europeus e os seus sistemas políticos, endeusavam chineses, persas e ameríndios.

Para o António, as utopias distópicas, saídas das “rêveries” do “passeante solitário de Genebra”, só se curavam com realismo, com a observação do homem e da experiência histórica das sociedades humanas. E fixava-se nos esforços dos utópicos chegados ao poder, dos jacobinos aos bolcheviques, que, para domesticar e “tornar bons os homens maus”, modificando a sociedade, denunciavam, prendiam, torturavam e assassinavam mais e com maiores requintes do que os regimes reaccionários que pretendiam combater e extirpar.

Desta visão realista resultou também o seu interesse pela Etologia, nomeadamente por Robert Ardrey e Konrad Lorenz, que desenvolveria em vários ensaios e artigos, sublinhando que, paralelamente à construção cultural, os homens não escapavam às regras e às leis comportamentais das sociedades de hominídeos, estudadas no seu meio natural.

Deste realismo político e antropológico nasceu também a preocupação do estudo do governo das sociedades e da realidade e verdade do poder, para além do discurso e das fórmulas ideológicas. O António foi aqui, como muitos de nós, influenciado pelos escritos de Sorel, de Pareto, de Mosca, de Michels, a começar pela teoria da circulação das elites; isto é, pelo estudo das oligarquias, que seria o tema da sua tese de Doutoramento: Quem Governa? Uma Análise Histórico-Política do Tema da Elite.

Também a análise da sociedade internacional devia ser feita, não a partir das fórmulas ideológicas e propagandísticas dos poderes dominantes e das instituições internacionais e internacionalistas suas subordinadas, mas de uma perspectiva realista, ou seja, a partir dos interesses históricos dos Estados, dos povos e dos dirigentes.

Foi sempre, por intuição, por convicção e por estudo, um nacionalista realista que seguia, na análise da História de Portugal, as pistas de Borges de Macedo e de Franco Nogueira e da experiência do “isolamento orgulhoso” do Portugal dos anos 60. Os seus ensaios – Para uma teoria geopolítica do conflito na Europa do Nosso tempo (1997), O olhar de Leviathan – uma introdução à política externa dos Estados modernos (2001) e Salto do Tigre, Geopolítica Aplicada (2007) reflectem a sua visão realista das relações internacionais.

Como todos os homens de pensamento que acreditam na necessidade e importância da acção e da cultura, o António Marques Bessa deixou-nos também muitas centenas de artigos dispersos por revistas, jornais, conferências, debates, programas partidários e folhetos panfletários.

Dele fica ainda, ou sobretudo, um legado de milhares de horas de aulas dadas a milhares de alunos que, ao longo dos anos, nunca deixou de ensinar e de impressionar – pela inteligência fulgurante, pela capacidade pedagógica, pela imaginação criativa e exemplificação inesperada e lúdica, numa linguagem que nenhuma censura ou código repressivo, alheio ou próprio, calava ou domesticava. O António era assim: inesquecível e inultrapassável, humanamente e politicamente livre e por isso incorrectíssimo na sua liberdade.

Sensível à importância do poder cultural, de Gramsci à Nouvelle Droite, o António Marques Bessa esteve em vários movimentos que, na Direita-Direita (a que nunca foi do Centro), foram mantendo vivo um pensamento alternativo. Assim, fez parte do núcleo fundacional da revista Futuro Presente, em 1980, integrando o movimento de renovação do pensamento de Direita que, então, agrupava correntes nacionais revolucionárias, tradicionalistas, conservadoras e liberais.

Do lado de lá

Deixo para o fim o mais importante. Além de toda esta actividade política e cultural, o António Marques Bessa era um católico de convicção e observância, um homem com uma fé profunda, vivida com obediência e coerência mas sem maniqueísmos ou sectarismos.

Morreu no dia 16 de Agosto, dia de Santo Estêvão, rei da Hungria, homónimo do primeiro mártir do Cristianismo. Estêvão, que foi o unificador das tribos húngaras e o primeiro rei cristão do país, consagrou a nação húngara à Virgem Maria – e o António Marques Bessa, que procurava um Deus escondido e surpreendente que gostava de se revelar aos mais pequenos por pequenos sinais, era um mariano devoto.

Lembro-me de falarmos sobre o paradoxo de um Deus e de um Bem que se escondem e nos surpreendem e de um Maligno e de um Mal que se revelam e nos solicitam, e de concluirmos, como crentes inquietos com os desencontros da Fé e da Razão, que era mais um mistério que só desvendaríamos do lado de lá.

O António agora já lá está, e imagino como seria divertido ouvi-lo contar como é; ouvi-lo, como tantas vezes o ouvimos noutras histórias e noutras descobertas de enigmas do lado de cá, com o seu riso poderoso, dominador, alegre, desprendido, desmistificador, a expôr esse e outros mistérios do Além. Mas vamos ter de esperar até que chegue o nosso dia.