Se as vestes dos fiéis ainda não se tinham rasgado por inteiro, acabaram em farrapos quando o cozinheiro Ljubomir Stanisic, que eu nem conhecia, comparou António Costa a Slobodan Milosevic. Ninguém concedeu ao sr. Ljubomir o benefício da dúvida “metafórica”, que há dias permitiu que um dirigente anti-racista apelasse repetidamente à morte do “homem branco” sem consequências penais e sociais. Ninguém lembrou o direito à opinião, que nos dias da “troika” levou Mário Soares a assinar um artigo em que comparava Pedro Passos Coelho a Hitler e a Mussolini – e toda a gente achou a equivalência admissível e até pertinente. Aliás, nos idos de 2013 era quase intolerável designar Pedro Passos Coelho por qualquer coisa abaixo de “fascista” ou, nos momentos de simpatia, “Salazar”. E não vale a pena notar o que por aí se dizia e diz impunemente de determinados estadistas remotos, da sra. Merkel, a Bruxa Nazi, ao sr. Trump, o Belzebu em carne e osso.
Não foram os tempos que mudaram, foram os protagonistas. Hoje, o sr. Ljubomir não pode chamar ditador ao dr. Costa pelo critério que impede um transeunte de lhe chamar palhaço sem ser admoestado pela repórter televisiva, intrépida a defender o emprego e a envergonhar a profissão. Nas sociedades livres, é assim: o Grande Líder não é criticável. Ou então é criticado com tantas cautelas e respeitinho que a crítica se assemelha a um louvor, e o crítico a um devoto. É o género, assaz praticado pelo “comentariado” vigente: “O dr. Costa, que é bondoso e sábio e competente, esteve um bocadinho mal nesta questão, erro que, estou seguro, a bondade, a sabedoria e a competência dele corrigirão sem demora.”
A verdade é que o sr. Ljubomir não precisava de ter feito a comparação a Milosevic para suscitar o ódio dos serviçais do regime. O regime sentenciou-o no momento em que, perante as sucessivas medidas de aniquilação da economia e de incontáveis vidas a pretexto da Covid, o sr. Ljubomir não se ficou. Milhões de portugueses, nados e criados por cá, ficam-se. Uns porque supõem que o salário, como a presbiopia, é garantido. Outros porque não têm noção. E os restantes porque têm medo. O sr. Ljubomir, que não é o português típico, não teve medo. Quase sozinho, e presumivelmente com uma situação material que o dispensaria de maçadas, decidiu maçar-se e recusar a criminosa arbitrariedade a que o país desceu. À revelia de associações, sindicatos e seitas afins, o sr. Ljubomir deu a cara e o nome por um processo que lhe trará menos alegrias do que represálias. A caça já começou: além da fúria xenófoba nas “redes”, ontem um diário informou que o “chef” subornara a polícia com vinho para furar o “confinamento” – uma transgressão hedionda na pátria do “eng. Sócrates” e motivo de sobra para a acusação do Ministério Público. O sr. Ljubomir não é nenhum mártir, mas um homem, num lugar e numa época em que os homens escasseiam.
O lugar e a época estão propícios a espécimes diferentes. Não é a primeira vez que os vejo. Uma ocasião, há alguns anos, passei boa parte da noite a seguir um programa de “debate” na televisão venezuelana. Terminei algures entre o fascínio e a náusea. Todos os convidados, sem excepção, exaltavam as virtudes do mandarim local. Sobretudo, todos se riam da impotência dos opositores, que desqualificavam nas atitudes e no carácter. Foi um serão instrutivo sobre a violência do poder discricionário. Actualmente, tal educação não obriga a recorrer aos despotismos caribenhos: os nossos “debates” não se distinguem daquele. Ou distinguem, dado que a quadrilha que manda na Venezuela sempre dispõe de oposição, resistência, multidões nas ruas. Os portugueses com voz usam-na ao serviço do dono. Os portugueses sem voz, inebriados pela esperança de “fundos” europeus, seduzidos pela dieta sem cães e submissos por vocação, estão em casa, a cumprir ordens sem finalidade que não a mera exibição de prepotência. É um estilo, que o sr. Ljubomir pelos vistos não partilha. Não sendo o único insubmisso, é dos poucos com repercussão, e por isso é interessante de perseguir e fácil de anular.
Não é absurdo supor que, um dia, os insubmissos sejam abundantes e difíceis de anular. Absurdo é presumir que a insubmissão se deverá a um princípio de liberdade e não ao completo desespero. Propaganda de lado, estamos só no início de uma crise devastadora. Quando a crise se alastrar, a miséria converterá ao protesto demasiados cidadãos, demasiado tarde: literalmente, vão protestar por nada. Por enquanto, o receio de arranjar chatices supera o receio da pobreza. Não é à toa que tudo na retórica das “autoridades” se destina a assustar as massas: não facilitem, não saiam, não abusem, não se juntem, não jantem, não bebam, não reclamem, não duvidem, não deixem de utilizar máscara inclusive depois da vacina e antes de 2038, não insistam. As “autoridades” não estão a falar da Covid: estão a falar de comando e controlo, curiosamente os termos escolhidos para apresentar a logística da vacinação. A Covid, que em nações dependentes lançou as bases da destruição, é agora o “argumento” para que, através de ameaças, o bom povo assista quieto e mudo à consagração da dita.
Obviamente, ao contrário de Milosevic, o dr. Costa não concebeu, ou permitiu, genocídios: o coitado apenas promoveu irresponsavelmente uma ruína imensa, cujas vítimas são cúmplices por mansidão. Ao que parece, o sr. Ljubomir não é manso, e se um quinto dos portugueses em risco de indigência o imitassem, a impunidade do dr. Costa não seria tão plena, nem a indigência tão certa. Por azar, são raros os que o imitam, muitos os que o difamam e inúmeros os que se calam. Por sorte, vivemos em democracia e não obedecemos a um tirano. Imagine-se se não vivêssemos e se obedecêssemos.