Correspondendo a um novo ciclo da vida cultural portuguesa, iniciado com este Governo, a Ministra da Cultura decidiu promover alterações na estrutura diretiva do Centro Cultural de Belém (CCB), exonerando de funções a Presidente do Conselho de Administração do CCB.
Esta exoneração, absolutamente normal, veio, contudo, originar um conjunto de frenéticas reações por parte das personagens do costume. Sabemos quem são.
São a corte habitual de alguns dos comensais do MUU e do Vila Foz, no Porto, cujos porta-vozes com assento no comentariado generalista espraiaram a sua indignação no seu espaço cativo do Eixo do Mal. São o grupo de convivas do Chiado, inconformados com o fim anunciado da sãoluização do CCB levada a cabo no último ano, e que reactivamente lançaram uma petição pública de protesto, onde pontificam os “respeitados intelectuais” habituais e as estafadas “figuras de referência do meio cultural”.
O antigo ministro João Costa lançou uma fatwa de esquerda contra a direitista Dalila Rodrigues. Daniel Oliveira, indignado profissional há décadas, verteu também o seu despeito contra a Ministra da Cultura, num texto malevolentíssimo — a roçar mesmo o ódio fulanizado — e publicado na sua coluna do Expresso. Outros opinadores habituais se lhe seguiram. E neste movimento circular de indignação proclamatória, até o filho do anterior primeiro-ministro António Costa, agora alçado a comentador televisivo, veio martelar umas banalidades levianas contra a “direita”.
Este sobressalto de indignação, a que a esquerda parlamentar prontamente reagiu, chamando a Ministra da Cultura à Assembleia da República, acabou, contudo, por ser muito útil à democracia portuguesa.
Graças ao desassombro e à clareza de Dalila Rodrigues ganhámos todos uma rara oportunidade de fazer incidir luz sobre uma casta ciosa do seu poder cultural, e cujos privilégios tão ciosamente defende.
A Ministra da Cultura foi, pois, corajosa na sua audição com os deputados: “Acabaram os compadrios, ‘lobbies’ e cunhas que levaram à constituição da atual equipa do CCB. Demitida que está, exonerada que está, afastada que está a sua presidente, está, evidentemente, [feita] a abordagem a este assalto ao poder, assalto ao CCB, que é absolutamente inadmissível nos termos em que foi realizado pelo ex-ministro da Cultura, doutor Pedro Adão e Silva”.
Foi mesmo preciso que a Ministra da Cultura explicasse isto ao país.
Foi preciso atribuir um significante ao significado para que finalmente Pedro Adão e Silva — o anterior Ministro da Cultura, e antes disso Comissário para o 25 de Abril — saísse do seu silêncio, e viesse reagir, como o fez, num autêntico Blitz Televisivo, exibindo todo o seu ressentimento e amargura pela queda do seu governo.
Quebrou assim o silêncio displicente dos últimos meses com que foi ignorando as notícias que davam conta que a presidente exonerada do CCB ali fora colocada por si próprio, para ali fazer favores políticos e pessoais, e assim alimentar uma clientela anteriormente protegida em Lisboa, numa gestão a que não faltaram extravagâncias, como a de estourar quase meio milhão de euros num evento de dois dias.
Percebe-se agora afinal o embaraço silencioso de Pedro Adão e Silva. Afinal de contas o mesmo que se ufana de ter resgatado o CCB das mãos de Joe Berardo também foi o mesmo, que, anos antes, assistiu alegremente, enquanto propagandista do governo de José Sócrates, à entrega do mesmo CCB a Joe Berardo, nos termos que sabemos.
Não é segredo para ninguém que a esquerda sempre teve um problema mal resolvido na sua relação com o CCB. Decidido em 1988, no segundo Governo liderado pelo Prof. Aníbal Cavaco Silva, com o impulso do Prof. Luís Valente de Oliveira, então seu Ministro do Planeamento e da Administração do Território, e depois com a obra a ser tutelada por Teresa Patrício Gouveia, primeiro, e Pedro Santana Lopes, depois, o CCB seria concluído em 1992, para acolher a primeira presidência portuguesa do Conselho Europeu, tendo aberto ao público há 31 anos.
Concebido pelos arquitetos Vittorio Gregotti e Manuel Salgado, logo este equipamento público se tornaria num marco icónico e numa referência arquitectónica incontornável, tendo sido acolhido como um dos espaços mais populares da cidade de Lisboa.
Mas a sua construção e abertura foram severamente combatidas pela esquerda portuguesa, que o denunciava, naqueles anos, como “monumento do cavaquismo”, não se eximindo a deplorar o suposto impacto visual negativo que teria numa zona nobre da cidade de Lisboa.
Derrotada pelas evidências e pela adesão popular esta oposição foi sendo esquecida com o tempo. Vieram depois tempos notáveis de florescimento cultural sob as lideranças de António Mega Ferreira e Vasco Graça Moura.
O Prof. António Lamas procurou depois definir um plano estratégico para o CCB que o articulasse e relacionasse com os monumentos, restantes museus e equipamentos culturais e jardins da zona, ambicionando para Belém um conceito de “Distrito Cultural” que potenciasse esta parte ocidental de Lisboa, como um polo turístico-cultural importante a nível nacional e europeu. Tudo isso seria abruptamente interrompido pelo poder socialista.
Com a chegada da Geringonça ao poder, o ministro da Cultura socialista, João Soares, decidiu despedir sumariamente a administração do CCB, nomeando para a sua presidência um seu adjunto, fazendo ali uma autêntica limpeza, com o mesmo vigor e contundência com que viria publicamente a ameaçar com um par de bofetadas quem então se lhe opunha.
No entanto o Dr. Elísio Sumavielle por lá foi continuando e fazendo, reconheça-se, um exemplar trabalho de gestão e de abertura a novos públicos do CCB, procurando conviver placidamente com os governos socialistas, que o foram assim reconduzindo. Tudo isto até ao momento em que recusou, perante o então ministro Pedro Adão e Silva, criar um cargo desenhado à medida para uma senhora, uma cunha do então primeiro-ministro, António Costa. Na sua saída, a meio do terceiro mandato, o Dr. Elísio Sumavielle deixou as contas positivas em 1,2 milhões de euros.
Foi então nomeada uma nova presidente que executasse fielmente e sem resistências os desejos de Pedro Adão e Silva e António Costa.
Assim, a primeira medida da nova presidente, Francisca Carneiro Fernandes, foi admitir Aida Tavares — sem concurso ou um equivalente processo de seleção (apenas com o seu voto solitário em Conselho de Administração) — criando expressamente um cargo para a admitida, com uma retumbante designação: Directora Artística para as Artes Performativas e Pensamento, novo cargo remunerado quase ao mesmo nível da presidente, com um vencimento de 5,4 mil euros brutos mensais (o vencimento da presidente é de 6.632,00 euros).
E na sequência desta nomeação de favor foram afastadas, num processo que constitui um caso de autêntico assédio moral, a anterior Directora de Artes Performativas e a anterior Coordenadora de Produção e Direcção de Cena.
Mas, dos agora indignados pela exoneração da presidente do CCB, ninguém pediu explicações sobre a substituição destas duas trabalhadoras, e experientes profissionais. Nenhuma pergunta. Nenhum gesto de solidariedade. Nenhuma palavra pública de compreensão. Um silêncio que constitui bem a prova da hipocrisia dos protagonistas desta indignação selectiva.
Mas também uma indignação que não nos conta a verdade: a presidente agora exonerada emagreceu os orçamentos de quase todos os responsáveis de áreas de programação, entregando a fatia de leão à nova “Directora Artística para as Artes Performativas e Pensamento”, onerando os custos salariais da estrutura em quase mais de 1 milhão de euros, ao mesmo tempo que cortou nas produções externas e nos alugueres de salas para eventos, que representam o maior bolo de rendimento próprio, e que propiciavam uma oferta cultural privada que levava outros públicos ao CCB, com taxas de ocupação por espetáculo na ordem dos 90%.
Entretanto também se foi verificando uma desvalorização do corpo de diretores e chefias intermédias, e com isto um efeito destrutivo na manutenção das equipas estabilizadas da Fundação CCB.
Por isso, perceber o percurso desta “Directora Artística para as Artes Performativas e Pensamento” – e que causou tamanho impacto e rebuliço na estabilidade e qualidade do CCB – é perceber também uma rede de cumplicidades que motivam agora todas estas reações dos indignados selectivos.
Amiga do anterior primeiro-ministro, de quem foi sempre pública apoiante em Lisboa, Aida Tavares foi durante anos directora do Teatro São Luiz, por escolha discricionária, depois de ter sido anulado o concurso para novo director artístico, de cujo júri fazia parte o seu marido.
Aliás o seu marido já presidiu ao Conselho de Administração da EGEAC, ao Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II, e já foi Secretário de Estado da Cultura, tudo sob a batuta de António Costa, quer na Câmara Municipal de Lisboa, quer no governo do PS.
Neste pequeno círculo lisboeta todos se conhecem. E todas as pequenas cumplicidades familiares e amiguismos pessoais se entrelaçam, constituindo-se em “meio cultural”, para ganhar, manter e exercer posições de poder, influência, benefício e privilégio.
Basta olhar para a iniciativa-cartaz da presidente exonerada do CCB e da sua” Directora Artística para as Artes Performativas e Pensamento”: o Festival “FeLiCidade”.
O mesmo ministro que se esqueceu de programar celebrações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões não se esqueceu de, dois dias antes de a sua sucessora tomar posse, assinar um protocolo com o CCB, no valor de 450.000 euros, para estes serem gastos num programa atravancado, organizado e atamancado em escassos três meses, e realizado em apenas dois dias de eventos. Quase meio milhão de euros estourados em dois dias no CCB, por um governo que estava a dois dias de sair do poder.
E de quem foi a direcção deste Festival “FeLiCidade? Precisamente da” Directora Artística para as Artes Performativas e Pensamento”. Um festival cujos curadores vieram praticamente todos das relações de Aida Tavares, beneficiários da sua proteção no tempo em que esta dirigiu o Teatro Municipal São Luiz.
Assistiu-se assim a uma espécie de sãoluização do CCB, que acompanhou a mudança (após interregno de 6 meses) de Aida Tavares do São Luiz para o CCB.
Olhemos para lista destes curadores, e colaboradores, e encontraremos ali a verdadeira definição de uma clientela. Uma clientela que reduz o CCB a um nicho, limitando-lhe a ambição nacional e internacional, impondo concepções de gosto – certamente legítimas – que terão o seu lugar em espaços culturais e vivenciais como o Teatro Praga ou o Teatro do Bairro, mas não num equipamento nacional com vocação geral global como o CCB.
O CCB não pode ser o São Luiz nem tão pouco pode ser o Teatro do Bairro Alto.
Independentemente dos méritos individuais culturais de cada um destes protagonistas (cuja reputação e valia não importa aqui discutir), a sua confluência em clientela organizada e articulada por uma operativa política, sob a capa de directora cultural, acaba por torpedear aquilo que deveria ser um meio cultural aberto a todos, diverso nas suas origens e mundividências.
Aliás, a gestão de Pedro Adão e Silva no Ministério da Cultura, e na Estrutura de Missão para as Comemorações do 50º Aniversário do 25 de Abril, acaba por ser paradigmática, precisamente pelo seu acobertamento deste tipo de oligarquização do meio cultural.
Episódios não faltam. Alguns deles quase anedóticos, não fora o evidente clima de promiscuidade por eles manifesto, o que nos deveria indignar a todos.
Por exemplo o caso do concurso “Escrita pela Democracia”, que visava apoiar a escrita de obras de ensaio sobre o 25 de Abril e a construção da Democracia portuguesa, no valor de 60 mil euros, correspondente a oito bolsas no valor de 7500 euros cada, em que uma dessas bolsas foi atribuída precisamente a um adjunto do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva (e enteado de outro anterior ministro da cultura socialista).
Este adjunto, que anteriormente pertencia à mesma estrutura de missão encarregada das comemorações do 25 de Abril, que organizou o concurso e concedeu o apoio financeiro para estas bolsas, não se coibiu de concorrer ele próprio a uma – e ganhou-a! — apenas uma semana depois de sair do Ministério. Foi um autêntico e oportuno subsídio de reintegração.
Mas, dito isto, a ninguém deve interessar remexer no passado deste tipo de episódios. Até porque existem demasiados e deprimentes. Importa agora olhar e seguir em frente. Porque as decisões devem ser tomadas, sem temor, quando se impõem em nome do bem comum.
E foi isso que a ministra da Cultura fez. Tem a competência legal e a autoridade política para isso. E tem sobretudo razão em pretender fazer vingar uma nova orientação estratégica ao CCB que rompa com as lógicas do amiguismo paroquial e projecte este centro cultural de referência num centro de excelência nacional e internacional.
- Uma nova orientação que respeite o Programa do Governo e que materialize a vivência da cultura e a divulgação da arte enquanto percurso estruturante e transversal do país, aberto ao mundo, à descoberta e ao conhecimento.
- Uma nova orientação ao serviço de uma visão da Cultura que esteja acima das políticas de gosto, ao serviço da valorização da língua portuguesa, da educação e divulgação artística, da preservação da nossa história e dos bens materiais e imateriais que a enformam, da proteção do património cultural e do incentivo à criação contemporânea.
- Uma nova orientação cujo Governo visa aumentar em 50% o valor atribuído à Cultura no Orçamento de Estado, ao longo da presente legislatura, assim interrompendo a negligência perpetuada pelos governos socialistas, que privilegiaram a distribuição privilegiada da escassez em detrimento de uma estratégia de valorização orçamental sustentada.
E finalmente sair deste assunto, virar a página, superar a casta e virar costas ao comissário e à sua tarefeira, acabar com as cunhas e cortar com o compadrio. Em suma, impor uma nova orientação onde se privilegie o interesse comum, que é de todos, em lugar do interesse de nicho, que é só para alguns.
Parafraseando Theodor Adorno, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, e centro de irradiação intelectual da Teoria Crítica, que veio a degenerar na vulgata esquerdista do wokismo presente:
“Há alguma evidência de que a dignidade da arte depende do tamanho do interesse dos que admiram”.
Lisboa, 17 de dezembro