Na passada terça-feira, começou a contagem dos votos das eleições intercalares norte-americanas. Todos os representantes da Câmara dos Representantes federal, um terço dos senadores do Senado federal, vários governadores estaduais, milhares de representantes das assembleias legislativas estaduais e outros milhares de cargos executivos e judiciais vão a votos.  Os E.U.A. utilizam um processo eleitoral arcaico, desenhado para um tempo muito anterior à nacionalização e federalização da política, reforçadas durante o longo século XX, no qual cada estado é constitucionalmente responsável pelas suas próprias regras eleitorais. Cada estado tem as suas próprias leis sobre recenseamento eleitoral, voto antecipado e voto postal, assim como prazos diferentes de começo e fim de contagem dos votos. Na prática, temos 50 eleições distintas, algo que considero obsoleto e deficiente, pois gera uma situação em que direitos políticos essenciais relativos aos mesmos órgãos federais são, de jure e de facto, diferentes entre cidadãos do mesmo país.

Assim, no momento em que escrevo, não disponho ainda dos resultados eleitorais finais. No entanto, sabemos já muita coisa. A maioria apertada do partido Democrata na Câmara dos Representantes parece ter dado lugar a uma outra maioria apertada do partido Republicano na mesma Câmara, estimando-se que estes consigam eleger cerca de 224 representantes e os primeiros 211. No Senado, as coisas estão ainda mais incertas, sendo provável que continue igualmente repartido em 50 senadores para cada partido, o que corresponde a uma maioria do partido do Presidente, pois o Vice-Presidente tem o voto de desempate. No entanto, é possível que, quer os Republicanos, quer os Democratas, consigam ainda uma maioria de 51 ou 52 lugares, dependendo dos resultados que saírem do Nevada, do Arizona e da segunda volta da eleição para senador da Georgia em Dezembro.

O que significam estes resultados para os próximos dois anos? Sendo quase certo que os Democratas perderam controlo unificado do Congresso, parece evidente que Biden terá agora de lidar com um congresso parcial ou totalmente dominado pelo partido oposto. Os próximos dois anos do seu mandato serão extremamente difíceis. Mesmo que seja possível para Biden negociar com um grupo moderado de representantes Republicanos para passar alguma legislação bipartidária, nomeadamente em questões orçamentais, esta possibilidade é mais teórica do que real. Tradicionalmente, o sistema norte-americano não dispõe da mesma centralidade da disciplina partidária que os sistemas parlamentares, na medida em que cada congressista é relativamente livre para agir como quiser. No entanto, nas últimas décadas, a crescente polarização e distanciamento ideológico entre os dois partidos tornou essa cooperação bipartidária muito mais difícil. É hoje muito mais difícil para congressistas moderados ou com mentalidades independentes “desobedecerem” às suas respectivas lideranças partidárias, que têm cada vez mais poder no Congresso e no espaço público.

No entanto, as performances de ambos os partidos nestas eleições não podem ser percebidas sem nos referirmos ao contrafactual. O que seria de esperar nestas eleições em função daquilo que os politólogos chamam habitualmente de factores fundamentais da eleição? Isto é, se imaginarmos que nada sabemos sobre as idiossincrasias, assuntos e personalidades dominantes de uma determinada eleição, qual é a linha de partida que podemos estabelecer para essa eleição, baseando-nos apenas no ciclo eleitoral, no estado da economia e na popularidade do presidente?

Os factores fundamentais nesta eleição fariam prever uma grande vitória para os republicanos, uma verdadeira onda vermelha. O ciclo eleitoral – eleições intercalares – dita que partido do presidente costuma perder representantes no Congresso, um padrão que se verifica há mais de 150 anos, com apenas quatro excepções. Em média, o partido do presidente perde cerca de 28 lugares. A acrescentar a este factor, o estado da economia, como todos sabemos, não é bom: apesar do desemprego ser baixo, a inflação do último ano nos EUA foi a mais alta em várias décadas, o que se traduz em dificuldades financeiras para muitas famílias. Finalmente, a popularidade do presidente, medida através da taxa de aprovação, é historicamente baixa, na casa dos 41%.

Autoria: Charles Franklin, Polls and Votes (2022)

Assim, com base nestes três factores fundamentais, poderíamos prever uma perda de 40 a 45 lugares na Câmara dos Representantes e 1-3 lugares no Senado para os Democratas. Com os dados disponíveis neste momento, estas perdas serão, ao invés, de 11 lugares na Câmara dos Representantes (ou menos) e 0-1 no Senado. Como podemos, então, explicar esta performance menor dos Republicanos? Várias explicações são possíveis.

Muitos analistas, comentadores e até políticos republicanos, como Paul Ryan, vieram dizer, nos últimos dias, que muitos dos candidatos apresentados pelos republicanos para algumas corridas eleitorais que se esperavam muito competitivas, como a de senador da Pensilvânia, eram de fraca qualidade, pois estavam demasiado conotados com a ala Trumpista e radical do partido. Num distrito ou estado onde os republicanos costumam ter votações muito elevadas, o partido apresentar candidatos mais radicais não ameaça necessariamente a eleição. Porém, o mesmo não se pode dizer em distritos e estados onde o eleitorado é mais moderado e dividido a meio entre os dois partidos. Nestes sítios, o mais avisado é que ambos os partidos nomeiem candidatos de alas moderadas, pois um vencedor necessita de conquistar os votos de independentes, moderados e eleitores que flutuam entre ambos os partidos. Claramente, em muitos sítios, como nas corridas a senador e governador da Pensilvânia ou do Arizona, isso não foi feito. Embora Donald Trump esteja constantemente no discurso de todos os comentadores e media, a verdade é que a sua imagem polarizadora, insensata e radical pode ter custado uma onda vermelha e uma maioria confortável no Congresso aos republicanos.

Candidatos republicanos menos ligados a Donald Trump, como o governador do Ohio Mike DeWine ou o governador da Flórida Ron DeSantis, um futuro candidato presidencial que dificultará uma recandidatura de Trump, obtiveram resultados eleitorais muito expressivos. DeSantis e DeWine foram dormir, na terça-feira, muito mais satisfeitos que os candidatos da ala Trumpista do partido. No entanto, a “derrota” política republicana não foi suficientemente pesada para que o próprio Donald Trump a percepcione como tal. Assim, vai continuar a querer participar activamente na vida política do país e, provavelmente, vai tentar uma nova candidatura presidencial em 2024, tendo para isso que vencer umas primárias presidenciais que se anteveem muito competitivas.

Outro factor que parece ter sido significativo em travar uma onda vermelha Republicana foi a decisão do Supremo Tribunal, no acórdão Dobbs v. Jackson, de reverter o famoso Roe v. Wade, o acórdão dos anos 70 que determinou que todas as mulheres, independentemente do seu Estado de residência, tinham liberdade para realizar um aborto até à linha de viabilidade do feto (actualmente, em cerca de 22 semanas). Independentemente da posição de cada um de nós nesta matéria sensível, há muitos anos que uma maioria larga dos americanos é a favor de um direito da mulher a interromper a gravidez no primeiro trimestre (12 semanas). Ou seja, se a linha de viabilidade é controversa e polémica para muitos (por ser demasiado tarde), a maioria dos americanos não é, no entanto, favorável a leis demasiado restritivas de proibição total ou proibição a partir das 6 semanas, como as que foram propostas e aprovadas em vários Estados republicanos, assim que revogado Roe v. Wade há uns meses. Uma vez revogado este acórdão, torna-se ainda possível que, caso o partido Republicano venha a ter controlo unificado do Congresso e da Presidência, legisle uma proibição nacional total do aborto. Muitas mulheres, mesmo mulheres moderadas, não ficaram confortáveis com esta possibilidade, nem com a possibilidade de um Senado Republicano vir a nomear mais juízes conservadores para o Supremo Tribunal. É possível que o Tribunal tenha ido longe demais, na sua acção contramaioritária, o que não só tem custos de reputação e legitimidade para a própria instituição, como pode ter custado várias eleições ao partido mais conservador. Numa sondagem à boca das urnas, 27% do eleitorado afirmava que o aborto era o assunto mais importante para o país neste momento (compare-se com 31% que afirmam que o assunto mais importante é a inflação) e 60% afirmava que estava insatisfeito ou zangado com a decisão do Supremo Tribunal.

Acresce a isto que, se o estado da economia parece ter favorecido os republicanos, a polarização política actual nos EUA divide o eleitorado em dois blocos estanques e longínquos entre si, o que torna cada vez mais raro o fenómeno de eleitores que flutuam entre os dois partidos, consoante a realidade do país em cada momento. Se no passado seria possível que muitos eleitores que votaram em Biden em 2020, ou que se situam mais próximos do partido Democrata, votassem agora, numas eleições intercalares, no partido Republicano, devido ao estado da economia, hoje tal comportamento parece ser mais difícil. Como os dois partidos estão mais longínquos, é mais custoso abdicarmos do valor representativo do nosso voto em prol da rotatividade de poder. Com métodos estatísticos relativamente sofisticados, Keith T. Poole e Howard Rosenthal mapearam todos os votos alguma realizados no Congresso norte-americano, desde 1791 até hoje, de modo a calcular a posição ideológica relativa de cada membro do Congresso e de cada partido. Como podemos observar na figura, a distância média entre os dois partidos tem vindo a aumentar nas últimas décadas para valores historicamente altos. É preciso, também, dizer que os dados mostram que, se ambos os partidos se afastaram mais do “centro” nos últimos anos, essa polarização é assimétrica. O partido Republicano deslocou-se mais para a direita do que o partido Democrata para a esquerda, muito antes de Donald J. Trump aparecer na fotografia.

Autoria: Projecto Voteview

Finalmente, um quarto factor parece ter prejudicado a possibilidade de uma onda vermelha. Se a ala mais radical e Trumpista do partido Republicano parece ter assustado alguns eleitores que poderiam ter dado o seu voto a esse partido noutras condições, também é verdade que o discurso desta ala radical não se refere apenas a assuntos substantivos, isto é, de políticas públicas. Desde 2020 que, após a sua derrota, Donald Trump alimentou um discurso que questiona as próprias regras e processos da democracia, pondo em causa a legitimidade do voto e a integridade do processo eleitoral democrático. Este discurso não foi apenas divulgado de forma estilística ou figurativa. Muitos acreditaram e acreditam nele de forma literal. É possível, no entanto, que os eleitores moderados não gostem deste tipo de discurso que questiona o próprio processo democrático. Como referi na minha última crónica, a democracia representativa não está em risco sempre que aqueles que nós não gostamos ganham eleições e os perigos para a democracia não advêm das posições políticas substantivas dos partidos. O risco vem, isso sim, da ascensão política de pessoas que questionam e tentam manipular as regras do jogo democrático. Isto parece estar a acontecer nos EUA e deve ser contido, inclusive dentro do próprio partido Republicano. Muitos eleitores provavelmente pensaram da mesma forma.

E o futuro? Hoje, os Estados Unidos são um país extremamente diverso, mas politicamente representado por apenas dois partidos totalmente antagónicos, que não se sobrepõem em nenhum assunto – nem económico, nem social. Se a isso somarmos as muitas deficiências institucionais do sistema norte-americano, a que aludi no início, mas que vão muito para além das regras e decisões eleitorais, e que passam pela manipulação das fronteiras de distritos eleitorais (gerrymandering), a hiper-desproporcionalidade em muitas camadas do sistema, a praxis de dificultar o exercício de direito de voto a algumas populações desde a revogação de duas alíneas do Voting Rights Act em 2013, o futuro não parece ser fácil nem auspicioso para o estado de saúde do regime democrático norte-americano, pelo menos sem uma grande reforma política. Tal reforma é, naturalmente, extremamente improvável e difícil de acontecer. A dificuldade do processo legislativo em converter as preferências da população em políticas públicas, devido ao excesso de pontos de vetoconjugado com a polarização entre partidos, irá fazer com que a frustração continue a crescer. Os próximos dois anos serão muito difíceis para Biden, uma vez que, sem controlo do Congresso, poderá fazer muito pouco. Mas, de certo modo, esse é o problema menor. Por razões mais profundas, é o próprio país que chegou a uma encruzilhada – e está num bloqueio institucional e político de onde não vejo saída.

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