Os alunos que estão agora a terminar a 4.ª classe não tiveram um único ano lectivo passado em condições de normalidade. Entre encerramentos de escolas, confinamentos obrigatórios por casos de infecção de terceiros, greves e falta de professores, as crianças mais desfavorecidas ficam mais para trás, com danos de aprendizagem provavelmente irreparáveis. Para ajudar, com o fim dos contratos de associação, centenas de alunos que frequentavam colégios privados foram, por falta de capacidade económica para neles continuar, despejados na rede pública, onde faltam professores e abundam as greves. As classes médias que ainda conseguem suportar propinas privadas, fazem-no em detrimento de outros investimentos. As elites passam por tudo isto como cão por vinha vindimada: é a tal história da ex-secretária de Estado Alexandra Leitão; os pobrezinhos que vão para a escola pública, porque os privados são para quem os pode pagar, como era o caso dos seus filhos.
Os tempos de espera para consultas e cirurgias no Serviço Nacional de Saúde, em especial nas áreas da cardiologia e da oncologia, têm aumentado. No Hospital da Guarda, para a primeira consulta de cardiologia, a espera já é de mais de 1400 dias. São mais de três anos só para a primeira consulta. Também para ajudar, os hospitais em regime de parceria público-privada, nomeadamente os de Loures e Braga, tidos como dos melhores do país, são hoje verdadeiros buracos na gestão e no cuidado prestado aos doentes. As famílias mais pobres, por falta de capacidade para suportar seguros de saúde privados, são, mais uma vez, as mais prejudicadas. A classe média que ainda pode, paga também esses seguros, prescindindo também assim de outros investimentos que podia fazer com o fruto do seu trabalho. As elites, naturalmente, já o faziam: para essas, o SNS é o último recurso, utilizável em situações limite, com os pés a entrar para a cova, para depois o elogiarem publicamente como o «melhor do mundo».
Os processos judiciais de natureza administrativa demoram, em média, 31 meses, e os de natureza fiscal 50 meses, sem contar com recursos. A média de duração de um processo judicial cível ronda um ano. Fazer valer os seus direitos em tribunal, graças às taxas de justiça e ao sistema de acesso ao direito, e suportar financeiramente os tempos de espera por decisões e execuções, é algo acessível a quem pode pagar – ou a pessoas abaixo da miséria, a quem o Estado garante o direito. Os «apenas» pobres e a classe média têm cada vez mais dificuldade em aceder à justiça.
A lista é interminável e chega a todos os sectores. Dos transportes públicos, de má qualidade e em greves constantes, aos elevados custos laborais, passando pelos aumentos da tributação indirecta, há um denominador comum nas políticas seguidas pelo PS desde 2015: com base no princípio de que é preciso atacar a riqueza, os pobres acabam por ser os mais prejudicados. Isso tem sido, porque a propaganda é necessária, artificialmente colmatado com apoiozinhos, subsidiozinhos, chequezinhos e, claro, com muitos e muitos anúncios de boas intenções atirados para gerar percepções públicas.
A mais recente «crise da habitação» (daqui a uns tempos talvez se fale em «emergência da habitação», é aguardar) e a fórmula que o Governo encontrou para responder a problemas que não conhece (sobre a ministra da Habitação, por exemplo, percebe-se que ela sabe o que é uma casa, suponho até que tenha vivido numa a vida inteira, mas mais do que isso é possível que desconheça) é mais um episódio que segue os mesmos trâmites: boas intenções, resultados agravados sobre os mais pobres, dinheiro despejado para subsidiar a miséria.
Nós devíamos estar a fazer perguntas e a tentar perceber o que não estamos a fazer ou o que estamos a fazer de forma errada; para perceber que tipo de problemas existe em concreto, em vez de andarmos feitos tontinhos a falar da «crise da habitação» como se se tratasse de um problema uniforme e generalizado, era mesmo útil discutir-se primeiro o problema, até para perceber se existe mesmo um problema, vários ou nenhum. Mas como nós não fazemos perguntas, até porque quem ocupa espaço público sabe perfeitamente que respostas quer e o resto vai andando, sim senhor, o Governo fez o que sabe fazer melhor e é apreciado pela generalidade dos portugueses: acolheu uma narrativa, diabolizou os inimigos que toda a gente neste país detesta (os ricos, os estrangeiros, os senhorios, os proprietários, os fundos imobiliários, os investidores, o alojamento local, enfim, qualquer espécie de vida dinâmica e independente), inventou um panfleto, fez um anúncio com pompa, teve o reconhecimento generalizado de que «recuperou iniciativa política», o beneplácito presidencial acerca dos «melões», fará algumas alterações legislativas para inglês ver, a maioria ficará na gaveta por manifesta impraticabilidade, as aprovadas revelar-se-ão novo fiasco para todos os interessados e, por fim, conseguiu cavar novas trincheiras na tribalização política e social.
Nos últimos anos, Lisboa e Porto encheram-se de estrangeiros que ali investiram o seu dinheiro e pagaram os impostos devidos. Instalaram-se em cidades onde o número de casas disponíveis não aumentou, fazendo aumentar a procura. Fizeram com as cidades o que o Estado, a miséria generalizada e uma política de congelamento de rendas secular não conseguiram: reabilitaram os centros históricos. Fizeram-no, naturalmente, à medida de quem o procurava e tinha dinheiro para o pagar. Mas também criaram riqueza e asseguraram empregos: empreiteiros, mediadores, canalizadores, electricistas, ladrilhadores, pedreiros, pintores, carpinteiros, advogados, contabilistas, notários, empregados de mesa, cozinheiros, gestores de condomínios, engenheiros, arquitectos, enfim, a lista dos beneficiados é imensa. Os preços das casas subiram, claro. Mesmo assim, para eles Portugal continuou e continua a ser barato. Por algum motivo, os rendimentos dos portugueses não acompanharam esta subida de preços. Num contexto de livre circulação de pessoas e capitais que o país vive, por alguma razão nós não acompanhamos o mesmo nível de rendimentos que muitos dos que aqui chegam possuem. Em vez de estarmos a fazer perguntas sobre as razões que nos levam a permanecer neste estado de estagnação salarial e crescimentos anémicos, resolvemos aceitá-los como naturais e rejeitar qualquer mudança que permita sair do marasmo e da podridão.
O segredo não está, pois, em querer um país que consiga competir com os mais ricos, mas antes em garantir a sua miséria relativa estabilizada e inquestionada. Um país, como o nosso, que aquilo de que mais precisa é de ricos, fica, afinal, afectadíssimo quando os vê chegar. É que a pior coisa que fizeram às elites da capital nos últimos anos, com a chegada de tantos estrangeiros com capital e rendimentos, foi o facto de esse movimento demográfico lhes ter esfregado na cara a sua mediocridade e até a sua pobreza, só disfarçada num país onde a maioria das pessoas circula entre o remediado e o sofrido. Como sempre, não é a ambição de melhorar a vida dos nossos mais pobres que está em causa. Esses continuarão a viver, como sempre viveram, fora dos grandes centros, dos subúrbios ao interior, sem transportes, sem rendimentos dignos, sem qualidade de vida, sem perspectivas. O que está de facto em causa é assegurar que a sofrível elite portuguesa possa continuar sem gente ao lado que lhe destape as misérias. Desde que não tenham de ir viver para o Lavradio ou para Mem Martins, que é de onde mandam vir as empregadas e o discurso sobre os pobrezinhos, tanto se lhes dá.
P.S.: Eventualmente, com a subida dos juros e com as novas regras de acesso ao crédito à habitação, é possível que a procura de imóveis reduza e os preços sejam forçados a descer qualquer coisa. Ao primeiro anúncio de descida de preços das casas, por mais pequeno que seja, o Governo fará questão de vir mandar dizer que essa descida se deveu às medidas que implementou ou que, se não implementou, quis implementar.