É certo que não se trata de uma novidade, mas cada vez mais parece um ponto sem retorno. Estamos viciados em sentimentos e não em factos, reféns de um jornalismo de entretenimento e de governos e oposições cujo único propósito é a sondagem do dia seguinte. É inevitável, perante este cenário, que os populismos proliferem à esquerda, à direita e ao centro. Em Portugal, onde não resiste o mínimo mecanismo de avaliação de políticas públicas, onde a memória histórica é inexistente, onde a generalidade dos cidadãos tem apenas o mínimo interesse pela condução dos destinos políticos do país e onde cada vez mais os eleitores se vão influenciando pela lógica dos sentimentos televisivos e das falsas percepções, é ainda mais natural que subsista um campo aberto para o desastre.

A chamada «crise de habitação», entretanto já promovida a «emergência», como escrevia Rui Tavares, no Expresso da passada sexta-feira, é apenas mais um dos sinais dessa degradação.

Parece ter sido perdida algures a capacidade de olhar para o tema e compreender que problemas existem em concreto e como podem ser resolvidos. Num país onde a larga maioria das pessoas é proprietária e não arrendatária, e onde grande parte desses proprietários não tem financiamento bancário, de que crise estamos a falar, afinal? Que perguntas devíamos estar a fazer e não estamos? Quem tem problemas de acesso à habitação e porquê? Onde existe dificuldade no acesso à habitação? Será no país inteiro? O problema é de oferta ou de procura? Há problemas paralelos por resolver e que têm influência directa no acesso à habitação? Como funcionam as redes de transportes públicos nas grandes áreas metropolitanas? Em mercado aberto será boa escolha ajustar as rendas aos salários ou seria preferível viver num país com salários competitivos capazes de suportar as rendas ditadas pelo mercado? Que percentagem representam os estrangeiros nas transacções imobiliárias? Qual tem sido, nos últimos dez anos, o valor médio das indemnizações pagas a inquilinos com contratos antigos como compensação pela celebração de acordos de revogação? Quantos inquilinos com rendas congeladas nas grandes cidades têm segunda habitação? Será justo, proporcional e intergeracionalmente equilibrado que os titulares de contratos antigos ou inquilinos acima de determinada idade sejam beneficiados com rendas baixíssimas, independentemente dos seus rendimentos? Qual é a percentagem de habitação pública que temos? Porque é que a habitação pública existente é quase sempre habitação social e em regime de gueto? Porque é que os jovens portugueses sem capacidade de suportar uma renda em Portugal emigram e lá fora conseguem encontrar casa e pagá-la, sem que os preços sejam substancialmente diferentes dos nossos, quando não são mesmo mais elevados? Será aceitável que um processo de despejo se prolongue durante 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 ou 10 anos num tribunal? Será equilibrado que um inquilino incumpridor possa ocultar os seus incumprimentos e celebrar novos e sucessivos contratos de arrendamento com outros proprietários, incumprindo sempre? Que garantias tem um senhorio de que o não pagamento de rendas lhe será ressarcido? Será um sistema justo quando permite que um inquilino possa permanecer durante anos ou décadas numa casa sem pagar renda e que possa não sofrer uma consequência por isso?

A lista de perguntas é longa. Muitas têm resposta factual conhecida. Mas nenhuma delas parece ter influência na tomada de decisão política. O Governo, em funções há oito anos, a maioria desse tempo em acordo com o PCP e o Bloco de Esquerda, é o mesmo Governo que providenciou edifícios públicos para a criação de hotéis e que não tem habitação pública para mostrar. De que temos andado a falar, afinal? De que tem servido este incêndio mediático da comunidade, que não traz soluções para coisa nenhuma, e que vende mesmo a ideia absurda de que é possível encontrar soluções rápidas quando o problema é de oferta, e que serve apenas para acicatar revoltas e manifestações de movimentos radicais? A quem serve este discurso já vulgarizado contra os senhorios, os construtores, os promotores, os mediadores imobiliários, os estrangeiros, os ricos?

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Serve um Governo, que em oito anos não resolveu um único problema, antes agravou muitos outros, e não tem assim de responder pelos seus fracassos. Serve a esquerda radical, interessada em combater todas as formas de vida independente e em fazer crescer o seu potencial de luta anti-burguesa e anti-capitalista. Serve uma imprensa feita de jornalistas-activistas, muito interessados em dramas pontuais e pouco por factos e resultados. Serve para perpetuar um sistema político e económico de miserabilismo social, de assistência permanente e de favores devidos aos partidos que melhor vendem a ideia (e não o resultado) de que estão preocupados com a vida das pessoas. E serve, por fim, o grande propósito nacional, que une esquerda e direita radicais, e junta os pobres deste país aos remediados da capital: tirar daqui qualquer forma de vida rica, independente, livre e inteligente. É assim há demasiado tempo, aliás. A Lisboazinha-que-sabe-ler lida agora com «os estrangeiros ricos» como lidou com os retornados: fica incomodada perante a sua chegada, porque são eles que expõem as suas misérias intelectuais, culturais e financeiras.

António Costa já o anunciou, para gáudio da parolada lisboeta (e também de espanhóis, gregos e até dinamarqueses, que atrairão gente que podia estar a viver, a investir e a gastar dinheiro em Portugal e vai deixar de o fazer): o regime dos residentes não habituais terminará. Este mecanismo, criado pelo Governo de José Sócrates, aliado a uma série de outros regimes jurídicos, entretanto também destruídos ou em vias disso, invadiu Lisboa dos tais «estrangeiros ricos». Vieram pagar IRS que de outra forma não teríamos; vieram consumir e pagar IVA que não arrecadaríamos; vieram reabilitar casas; vieram criar empresas; vieram pagar salários; vieram pagar IMT, IMI, Imposto de Selo; trouxeram para muitos sectores uma dinâmica empresarial e até uma forma de pensar, de estar e de trabalhar que devíamos aproveitar e não negligenciar. Mas, caramba, o que se esperaria de um sítio que transformou em teoria dominante a patetice de preferir acolher estrangeiros cujas vidas precisam da presença do Estado para tudo (e não, não estou a dizer que não devam ser acolhidos todos os que nos procuram e que possamos acolher) e de detestar estrangeiros que não precisam do Estado para nada?

O resultado de todo este esforço político à esquerda em matéria de habitação terá um resultado previsível: mais dificuldades no acesso à habitação; casas mais caras; menos confiança no Estado; menos capital disponível. Como a avaliação de resultados é a que se conhece, daqui a um ano o bode expiatório será outro. O culpado será sempre outro, de preferência um grupo que tenha capital e não dependa do Estado. A esquerda radical detesta estrangeiros ricos. A direita radical abomina estrangeiros pobres. É isto o populismo: não nos serve para nada, mas oferece a todos uma satisfação considerável. Um dia seremos, por fim, ultrapassados pela Roménia, e teremos orgulho nisso. Estais todos de parabéns.