Uma pergunta que me fazem muitas vezes é se a Ana Laura, a minha filha de 8 anos, se habituou à condição de diabética. A essa pergunta eu costumava responder que sim. Que dava 5 injecções e picava os dedos 10 vezes por dia. Portanto, ao fim de duas semanas tinha levado 75 injecções e picado os dedos 150 vezes. É verdade que, ao fim desse tempo, começou a oferecer resistência às injecções. Dado que a alternativa é morrer, tínhamos de a obrigar. Obrigar é mesmo obrigar. Imobilizá-la e injectá-la enquanto berrava e chorava. Felizmente, connosco, isso durou apenas dois dias. Que remédio teve ela que não o de se habituar rapidamente. Mas sei de uma família em que o pai, todos os dias, durante uns anos, tinha de sair do trabalho algumas vezes por dia para ir imobilizar a criança, enquanto a mãe lhe dava a injecção.
Um facto pouco conhecido é que alguém que tem diabetes de tipo 1 é totalmente insulinodependente. A diabetes de tipo 1 não é consequência de má alimentação nem do tipo de vida. É uma doença auto-imune causada por uma destruição das células que produzem insulina no pâncreas. Por isso, sem as injecções de insulina o paciente rapidamente morrerá. E, no actual estado da arte, tem de levar uma injecção sempre que come. Se injectar insulina insuficiente, os níveis de glicose no sangue (glicemia) sobem e, a longo-prazo, isso trará problemas pela certa: retinopatia (cegueira), demência, enfartes, rins, amputações, etc. E, muitas vezes, o longo prazo chega bem depressa. No hospital, conheci uma adolescente, que teria 15 ou 16 anos, que já tinha problemas nos rins que poderiam ser irreversíveis. Mas insulina a mais é igualmente grave. Uma injecção excessiva de insulina pode ser letal: a glicemia cai em demasia e facilmente se entra em coma e se morre. Por isso, antes de cada injecção, é necessário picar o dedo e extrair sangue para medir o nível de glicemia e ajustar a dose de insulina a esse nível e ao que vai comer.
É esta a gestão que um pai ou uma mãe tem de fazer. Por um lado, quer evitar as hiperglicemias (glicemias demasiado altas), mas vive em pânico com as hipoglicemias. No nosso caso, medíamos sempre à meia-noite e às três da manhã. Às vezes, nas noites em que os valores não estavam estáveis, tinha de ser mais vezes. O pânico de ver valores de glicemia abaixo de 40 (quando os valores mínimos são 70) é, simplesmente, avassalador. Não me surpreendeu quando soube de uma mulher que, há vários anos, de duas em das horas acorda para medir a glicemia da filha.
A minha menina foi diagnosticada com 7 anos, antes das últimas férias de Verão. Crianças diagnosticadas até aos 5 têm direito a uma bomba de insulina fornecida pelo Sistema Nacional de Saúde. Crianças com mais de 5 anos ficam em lista de espera. Pelo que vejo à minha volta, são vários anos em espera. Quando levo a minha filha ao Hospital de Braga, é comum encontrar as fantásticas Drª Sofia Martins e a Enfermeira Olga a entregar bombas a adolescentes que têm diabetes há 5 ou 6 anos. Da última vez, a Drª Sofia até aproveitou a presença da minha filha para mostrar aos jovens como funcionava a bomba Fiz o que faria qualquer pai com possibilidades para isso. Comprámos uma bomba de insulina. A bomba injecta continuamente uma pequena dose de insulina e às refeições dá-se ordem para dar uma injecção extra. A dose a dar é o utilizador que define.
A diferença na qualidade de vida da criança (e nos pais) é abissal. Com a bomba a insulina é injectada a partir de um cateter que tem de ser mudado de 3 em 3 dias. Ou seja, as 5 injecções por dia são substituídas por uma picada a cada 3 dias. E, muito importante, sempre que quer comer pode dar ordem à máquina para injectar a insulina, pelo que deixou de necessitar de horários extremamente rígidos para as refeições.
Mais do que o conforto, com a máquina consegue-se um controlo muito melhor da doença, especialmente quando conjugada com os novos monitores contínuos de glicemia, que dispensam as constantes picadas nos dedos. Quando os valores da glicemia são altos, ordena-se à máquina que aumente a dose, quando estão baixos, que diminua ou pare. Continuámos sem dormir, mas já podíamos fazer todas as leituras e todos os ajustes sem acordar a Laura.
Quando voltámos ao Hospital de Braga, já depois do Verão, descobrimos que a Laura tinha controlado muito bem a diabetes. A sua HbA1c, uma medida da concentração média de glucose no sangue, era de 6,3%. Uma pessoa normal terá valores abaixo de 6%. Diabéticos têm valores tipicamente acima de 6,5%. Em crianças é raro e difícil ter valores abaixo de 7 ou 7,5%. A minha filha, em pouco tempo, conseguiu um controlo que poucas crianças conseguiram. Foi por esta altura, ao perceber a diferença que as novas tecnologias faziam na nossa vida, que me senti verdadeiramente revoltado por saber que tantas crianças estão em listas de espera de vários anos. Era indecente. São crianças e adolescentes condenados a uma vida pior por não terem direito aos mesmos aparelhos.
Tinha planeado escrever esta semana um artigo particularmente violento sobre este assunto. Era a minha forma de comemorar o dia mundial da diabetes. Mas, na semana passada, saiu a notícia de que para o ano todas as crianças até aos 10 anos terão direito à bomba de insulina. Até 2019, todos os adolescentes até aos 18 terão a sua bomba. De repente, Portugal tornou-se um país um pouco mais decente.
230 crianças receberão as bombas em 2017. Pelas minhas contas, estamos a falar de uma despesa que ficará entre os 500 mil e o milhão de euros. Custa a crer que não fosse possível ser-se mais rápido e custa saber que tantos jovens continuarão mais alguns anos à espera. Mas é um passo.