Quando entrei para a escola, em Setembro de 1991, mesmo num concelho suburbano e gerido por maiorias comunistas como o Seixal, o ar do tempo era de mudança e ascensão. O país estava na Comunidade Europeia, o muro de Berlim tinha caído (mesmo que na minha escola primária as festas de final de período continuassem a encerrar com canções do Barata Moura e o Grândola, Vila Morena, e a voz do Cândido Mota passasse dias em carros de som a anunciar comícios do PCP ou mais jornadas de luta) e aos poucos pequenos detalhes das nossas vidas iam mudando. A escola preparatória onde ainda passei os 5.º e 6.º anos, um conjunto de barracas de madeira e zinco onde não tínhamos aulas durante dois dias sempre que chovia e por onde passavam ratazanas diariamente, foi finalmente demolida em 1996, depois de 20 anos de provisoriedade. Também o esgoto a céu aberto atrás da minha casa, onde ainda maiores ratazanas sobreviviam às pedras que lhes atirávamos, foi fechado e substituído por um espaço ajardinado, dando continuidade a um maior jardim onde também foi construída uma piscina municipal – os quais, jardim e piscina, substituíram um acampamento de ciganos temido por toda a gente e que só foi demolido dias depois de os residentes do tal acampamento terem passado uma tarde entretidos a dar tiros de caçadeira, primeiro uns contra os outros, depois contra a polícia, num espectáculo para o qual se tinha vista privilegiada do meu quarto (vista que lamentavelmente me foi vedada, pelo que me limitei a passar uma tarde deitado na cama, de estores fechados, a ouvir tiros, entre o assustado e o aborrecido).

A vida melhorava aos poucos, de facto, e os espaços que a acompanhavam reflectiam essa mudança. Os salários subiam, o estilo de vida melhorava, nós tínhamos acesso a coisas que nem nos melhores sonhos dos meus avós teríamos. Mas, ao mesmo tempo, mantinha-se também um certo ar da normalidade retardatária. O bairro da Jamaica erguia-se sólido que nem uma rocha, a pequena criminalidade diária, sem queixas e sem penas, prosseguia numa rotina que nos acompanhava desde que saíamos de casa até que voltávamos, e que incluía o espaço escolar, onde chegavam mesmo a entrar facas e pistolas, e que nos fazia desejar apenas não sermos notados por nada deste mundo, e a guardar, na melhor das hipóteses, uma moeda solitária entre a peúga e a planta do pé para evitar danos maiores caso fôssemos, por alguma razão, indevidamente notados. E até mesmo na sala de aula sobrevivia um clima semi-revolucionário, com não raros professores sempre dispostos a vender-nos a ideia da luta de classes, dos explorados e dos exploradores, dos opressores e dos oprimidos, com um momento pessoalmente atribulado vivido no dia em que, já no ensino secundário, algures entre os meus 13 e os 15 anos, acabei por discutir com uma professora que me tentava explicar que eu desempenhava socialmente um papel de privilegiado – e que, por isso, era socialmente natural, embora moralmente errado, que eu fosse alvo de tentativas de roubo tantas vezes, porque havia pessoas que queriam ter os meus ténis (eu tinha direito a um par novo por cada aniversário, imagine-se) e não podiam pagá-los.

Quando fui para o 12.º ano, acabei com os costados numa escola em Almada – porque no Seixal ninguém escolhia Filosofia e, portanto, não havia turmas. Essa escola secundária chamava-se António Gedeão. E ali passei um ano, mais uma vez a ter aulas em barracas de madeira e zinco, onde se desesperava de frio no Inverno e se derretia de calor no Verão. E acabei a relembrar-me de todos estes pedaços da minha história porque na semana passada vi uma notícia inesperada, mas não surpreendente: houve protestos na António Gedeão contra o estado daquelas barracas que, pasme-se, subsistem por ali ao fim de 30 anos de provisoriedade. De repente, tive a sensação de estar no mesmo tempo que estava em 2001, quando entrei naquela escola. Tal como, ali ao lado, o bairro da Jamaica continua inamovível no auto-proclamado «concelho de Abril» seixalense.

Que o país mudou, mudou. Isso é inquestionável. Mas nós estamos há duas décadas numa espécie de congelador social e económico que muitas vezes vai começando a demonstrar que, de alguma maneira, nos arriscamos a ficar piores do que estávamos naquela altura em que eu atirava calhaus a ratazanas num esgoto a céu aberto atrás da minha casa. Um exemplo que explica isto muito bem é o número de pessoas pobres antes de receber dinheiro do Estado: em 1994 eram 37% e agora andamos pelos 44%. Ou seja, somos hoje um país mais pobre e mais dependente de um Estado, gerido por sistemas de poder de grupo, que sobrevive a arrecadar dinheiro de quem produz para entregar a quem precisa, e os que precisam são hoje mais do que naquela altura.

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Não quero dizer, naturalmente, que não deva existir uma preocupação acrescida com quem precisa e, por algum motivo, vive afundado na pobreza. Mas há alguma coisa que entre nós subsiste de errado quando todos os mecanismos do Estado não estão feitos para que a sociedade gere riqueza e para que haja cada vez menos gente a precisar do dinheiro dos impostos para viver, mas para o contrário, mesmo chegando ao ponto de termos Governos, como o actual, que fazem propaganda sobre a quantidade de pobres a quem dão dinheiro. Afinal, para que serve um Governo? Para fazer com que o país, vá, civil possa criar riqueza ou para subsidiar a pobreza?

O Estado não tem uma administração pública célere, eficaz e vocacionada para servir, antes para atrapalhar o mais que puder. A justiça é lenta, burocrática e cara. As escolas não funcionam por falta de condições, por causa das greves ou da falta de professores. O sistema nacional de saúde é o que se vê. As únicas estradas não esburacadas são as vias-rápidas pagas com impostos e portagens. Os transportes são desorganizados, decrépitos e grevistas. Tudo, ou praticamente tudo, no Estado encontra-se feito para contemplar sectores de lobbying, corporações e sindicatos, e nada para corresponder às necessidades das pessoas e das empresas. O que se vai vendo é a consolidação de uma casta que criou raízes à volta do poder e o resto vai fazendo o que pode para sobreviver. Para que serve um Governo, afinal?

O pior de tudo é, na verdade, a falta de futuro, a convicção de que daqui a 10 ou 20 anos estaremos piores e não o contrário. Naqueles dias em que andávamos ali perdidos, a uma distância física e social louca da Lisboa das Amoreiras, a tentar fugir a assaltos, a pancadaria e a navalhadas, e a dar pontapés em seringas usadas que repousavam nos descampados onde eu fingia ser o Futre em botas ortopédicas, a sobrevivência era mais fácil porque naquelas casas das classes médias suburbanas havia ambição e uma quase absoluta certeza de que a ascensão era possível. Hoje, nem isso temos. Somos um país sem futuro histórico e colectivo, com a ilusão da democracia da urna, meramente eleitoral, sem sociedade e sem a liberdade que só a riqueza permite. As coisas são o que são e, no caso, são uma tristeza. A caminho dos 50 anos do 25 de Abril, talvez fosse útil começar a pensar no pedaço de revolução que falta fazer.