Quando, em Abril de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa visitou o Senegal e foi confrontado com as usuais perguntas sobre culpas dos portugueses no tráfico transatlântico de escravos, resolveu muito adequadamente lembrar que Portugal fora um dos países que abolira essa horrível actividade. Acto contínuo a extrema-esquerda woke, que prolifera no Bloco e afins, caiu-lhe em cima por ele não ter aproveitado essa ocasião para assumir culpas e penitências. Terá sido injusta e apressada, porque Marcelo é, nessa área, um dos seus maiores aliados. Talvez não o fosse em 2017, mas é-o agora. Em bom rigor já tinha revelado essa sua inclinação em 25 de Abril de 2023 quando, no contexto do discurso proferido na AR, decidiu pedir desculpa ao Brasil pela escravatura e “assumir responsabilidades para o futuro” pela sua existência nesse território.
Critiquei duramente esse aspecto do discurso presidencial e, alguns meses depois, lembrei-lhe, e a todos os meus concidadãos, que, de acordo com os estudos e reivindicações woke, o montante a pagar ao Brasil pelo envolvimento de Portugal no tráfico transatlântico de escravos seria de 20 biliões de dólares. Nesse montante não se contabilizava aquilo que, no mesmo delirante comprimento de onda e pela mesma razão, Portugal supostamente deveria a África.
Nenhuma dessas coisas terá tido eco na mente presidencial, pois, a acreditar nas agências noticiosas, Marcelo veio agora, no contexto de um jantar com correspondentes estrangeiros, reconhecer de forma inespecífica a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a época colonial, e terá sugerido o pagamento de reparações por esses erros passados. Ao que parece Marcelo terá dito o seguinte: “Temos de pagar os custos. Há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto.” Se bem percebo, não se terá referido expressamente à escravatura, mas sim ao século XX e à época da guerra colonial. Todavia, sendo vago e impreciso, permitiu que os órgãos de comunicação logo o fizessem e que inserissem estas suas declarações num pré-fabricado e bem conhecido acto de contrição woke sobre escravatura. Sendo Marcelo uma pessoa inteligente e conhecendo muito bem o mundo da informação e do jornalismo, é improvável que não tenha pensado nesse aproveitamento do que havia dito. Acresce que não sentiu necessidade de fazer qualquer esclarecimento para corrigir aquilo que parece ser um mal-entendido ou um aproveitamento abusivo. Ou seja, calou e, portanto, consentiu.
Nos últimos sete anos escrevi mais de uma centena de artigos sobre este assunto no Público, no DN e, sobretudo, no Observador. Esses artigos estão reunidos em três livros que podem ser facilmente encontrados a par de vários outros. Não levo nada a mal que Marcelo não tenha lido alguns desses textos ou que, tendo-o feito, não tenha ficado convencido com os meus argumentos. Não pretendo catequizar ninguém, apenas informar ,e é claro que cada um é livre de, na posse de sólida informação, concluir como a cabeça e o coração lhe ditarem. Marcelo, como qualquer outro cidadão português, é livre de ter a sua opinião. Considera que se pode aplicar retroactivamente a classificação de “crime” a práticas de épocas que assim as não julgavam? Eu acho que é um absurdo lógico e histórico, sobre o qual escrevi diversas vezes, mas, enfim, são diferenças de opinião. Marcelo ficará na sua, eu fico na minha, os portugueses decidirão como melhor acharem. Marcelo considera que devem pagar-se reparações por práticas já interditadas há cerca de 200 anos? Eu considero que não, por razões que também expus extensamente, mas aceito que o PR tenha uma opinião diferente. Custa-me a entender, claro, que defenda ou sugira a reparação dessas injustiças e violências antigas, através de indemnizações e outras formas de compensação, e que não siga o mesmo critério a respeito de todas — repito: de todas — as violências e injustiças que se sucederam neste solo pátrio ou nas suas extensões ultramarinas. Deveremos indemnizar os descendentes de mouros que os portugueses medievais mataram e escravizaram? Faremos outro tanto às populações orientais e ameríndias? E iremos pedir indemnizações à Tunísia ou à Argélia pelos muitos portugueses que os seus piratas raptaram e escravizaram? E à França pelas depredações e brutalidades napoleónicas?
Fico-me por aqui nas perguntas pois a prossegui-las a lista seria infindável. Marcelo não se pronunciou sobre essa lista, talvez não tenha pensado no assunto, mas não lhe levo isso a mal pois toda a gente tem direito às suas incoerenciazinhas. Aquilo que levo a mal é que, falando como PR, tenha responsabilizado e empenhado o Portugal actual por factos há muito passados e há muito solucionados como então foi possível. Estará Marcelo convencido de que, ao fazê-lo, exprime o sentir profundo do país? Baseou-se nalgum estudo de opinião? Sabe o que a população portuguesa pensa sobre estes assuntos? A ideia que fui formando ao longo dos vários anos em que debati estas questões — ideia que os meus contraditores assumidamente também têm — é a de que a maior parte da população portuguesa é contrária ao pagamento de reparações por factos ocorridos no decorrer da nossa história colonial. Essa minha ideia, parece bater certo com os resultados de estudos recentes que revelam que os portugueses fazem uma avaliação geralmente positiva ou benevolente acerca do seu passado colonial.
Marcelo conhecerá certamente esses estudos de opinião, mas ainda assim não se coibiu de comprometer o país num pagamento genérico e não contabilizado por supostos erros, crimes ou malfeitorias. Aparentemente fez tudo isso como franco-atirador (ou bombista-suicida, se se preferir). Terá coordenado essa sua intenção penitente e indemnizatória com o actual governo? Não creio que o tenha feito porque o PR também explicou, no já referido jantar com jornalistas estrangeiros, que a comunicação com Luís Montenegro era difícil e opaca. Marcelo classificou Montenegro como “uma pessoa que vem de um um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais”. Seria um “político do silêncio”, um homem “lento”, que só o informa das coisas à ultima da hora e cujos secretismos — o PR não o disse, mas percebe-se nas entrelinhas — lhe desagradam. Para além da deselegância destas considerações de natureza pessoal, para além, também, de se notar, nesta passagem, uma certa sobranceria do homem “despachado” da capital relativamente ao mundo mais “demorado” da província, percebe-se a irritação que a conduta de Montenegro lhe causa e a comunicação pouco fluída entre ambos, o que, diga-se de passagem, é um ponto a favor de Montenegro. É óbvio que o suposto “rural” e “lento” é suficientemente arguto, como acontece frequentemente com quem vem do mundo rural, para perceber que certas paredes têm muitos ouvidos e que a informação tem de ser cuidadosamente controlada. É, por isso, muito improvável que o assunto das reparações por acontecimentos da nossa história colonial tenha sido discutido com o (ou tenha tido a anuência do) primeiro-ministro.
O que parece claro é que esta foi uma batata quente que Marcelo decidiu atirar para as mãos de Montenegro e de todos nós. Sem especificar a que se referia, sem fundamentar o que quer que fosse, dando azo a todas as especulações e aproveitamentos jornalísticos, ideológicos e políticos, Marcelo pôs a questão das reparações na ordem do dia, abriu um precedente perigosíssimo — e o Brasil já aí está a exigir “acções concretas”. Acresce que, tanto quanto sei, o PR nunca anunciou este propósito indemnizatório relativamente à escravatura ou ao império colonial durante as suas campanhas para as eleições presidenciais. Esta é, portanto, uma surpresa — desagradável surpresa, diga-se —, de alguém que vai no arrasto do wokismo que grassa nas sociedades ocidentais e que também toca certos sectores do mundo católico. Resta saber se Marcelo vai nessa onda por se ter convertido sinceramente ao wokismo ou apenas porque tem a irresistível necessidade de falar e de ser falado. Em qualquer dos casos estas tiradas do PR constituem não uma solução, mas um problema para o governo e para o país.