Só há possivelmente dois escritores que mudaram realmente Portugal. Fizeram-no estabilizando a língua e a maneira de entender o país. Os nomes são Camões e Eça de Queirós. E isso tem tanto de virtuoso como de problemático.
Hoje, escrever bem é escrever como Eça escrevia. Como pensar bem o país, é pensá-lo como Eça o pensava. Fica bem dizer que em Portugal nada funciona, que tudo é fraca imitação, que somos uma choldra. Sabe-nos bem falar em decadência, provincianismo, declínio. Mas se Portugal não é excecional pela sua glória, também não o é pela sua pequenez. Nem na corrupção somos novidade.
Não me aflijo com a transladação. Na semana em que a Tupperware fechou a fábrica em Portugal, não há mal em andar com restos mortais a passear pelo país. Ainda assim, ela constitui o triunfo do elitismo que Eça cedo soube denunciar.
Dentro da “bolha”, Eça é visto como um par. Diplomata, antes de escritor. Bem vestido e de boas maneiras, antes de jornalista. É alguém que – talvez por ingenuidade – se imagina que não fugiria ao protocolo. Os seus textos que delapidaram a endogamia e poligamia nacional tornaram-se bem postos, certinhos, por fim, suaves.
Eça não tem calão. Tem estrangeirismos. Eça não fala dos bairros. Fala dos palacetes. Eça não é parolo. É burguês. E a culpa não é dele. É do que dele fizeram. Pois, sabemo-lo bem, se hoje alguém se aventurasse a escrever como ele, rapidamente seria banido dos banquetes. Adornou-se a letra, guardou-se o veneno, esqueceu-se a liberdade.
Eça chegou esta quarta ao Panteão Nacional. E chegou tal como Teodorico Raposo após a “expedição” à Terra Santa. Em vez de uma relíquia, trouxe a camisa da amante. Ou melhor, vê-se ele mesmo transformado na camisa da amante. No fundo, foi invertido o famoso cartoon do João Abel Manta. Já não é Eça que manipula as personagens como fantoches. É o próprio Eça a personagem e o fantoche de Portugal.
Como bem notou Miguel Tamen, “os principais romances de Eça de Queirós contam interminavelmente a história daquilo que acontece quando alguém ou alguma coisa chega de fora”. Para nós isso foi motivo para a distração e o divertimento. Serviu para desviar a atenção. Consagrou o estrangeiro como fetiche nacional. Ficamos pelo cordão do monóculo. Não ascendemos à lente. Vangloriando-nos da nossa própria cultura, exibimos o nosso primitivismo. Louvando Eça, mostramos que não estamos à sua altura.
Há, aliás, uma passagem do diário de Gombrowicz onde, fazendo a transliteração da Polónia para Portugal, isto é dito na perfeição. “Chopin e Mickiewicz servem-vos apenas para evidenciar a vossa pequenez, na medida em que vós (…) brandis as glórias polacas diante dos narizes (…) unicamente com a finalidade de fortalecer o vosso amor-próprio enfraquecido e de atribuir importância a vós próprios. Sois como os pobres que se gabam de a avó ter uma quinta e de costumar ir a Paris. Sois os parentes pobres do mundo a tentar impressionar vós próprios e os outros”.
Portugal continua a tropeçar nos seus próprios sapatos. Hoje, Eça, esse sacana, não só denuncia o mal jeito. É ele mesmo que nos faz tropeçar.