1. O diplomata e o artista estavam perplexos. Em cada caminhada a pé, por ruas, vielas, escadinhas ou avenidas, o espectáculo não variava: entre a dúvida e o espanto, ambos, o ex-embaixador Fernando Andresen, cuja carreira pedia um livro, e o pintor Jorge Martins, que só Deus sabe até onde pode ir nas suas telas, não paravam de se interrogar: haveria assim tanta gente a comprar capas coloridas de telemóveis e tantos interessados capazes de vedar o excesso daquela oferta omnipresente? Parecia subitamente que o artesanato de Nápoles se metamorfaseara exclusivamente em capas de telemóvel — não se via mais nada — mas a proeza não era afinal senão mais um dos apontamentos sui generis que íamos retendo no olhar. Um entre mil. Fomo-nos habituando.

2. Nápoles é uma cidade inexplicável. Não chega recordar lhe as sagas e a história e dizer que foi grande e pátria de dois reinos; gabar-lhe a plácida baía, em cujo espelho de água se reflectem palácios rosa ocre ou verde pálido; beber com sofreguidão um património esplendoroso, olhar, re-olhar e voltar a olhar os Palácios Reais, as estátuas, altares, jardins, mármores, telas, lustres, frescos. E a luz de um Caravaggio, talvez o mais belo Caravaggio, que parece estar à nossa espera, mal passamos o umbral da Chiesa Pio Monte della Misericordia. Não, não chega evocar um passado tão poderosamente presente no presente de Nápoles, mesmo que o guardemos para sempre na mente e na alma. Nem basta reter a sobreposição das glórias e desastres daqueles reinos e daqueles povos, é preciso ir ao quase inexplicável cruzamento de tudo isso com o “actual” napolitano. O hoje, deles. A rua. A cor. As pessoas. As pessoas daquele ruído, daquela vitalidade, daquele trânsito, daquele lixo, daquele pujante comércio modesto ombreando com o melhor luxo. Daquela geografia enfim, onde o verbo é sempre gritado e todas as regras parecem ter caído em desuso, apesar dos carabinieri, que como cogumelos negros, brotam do chão e das paredes. Tão forte e tão impressivo é tudo isto, que por vezes é como se a História conseguisse desvanecer-se, diluindo-se na vibração intensíssima do ar, para imediatamente nos capturar de novo para o poder e o fausto antigos. E eis porventura uma (pobre) explicação para o “inexplicável”: esse incessante, quase ofegante vai-vem entre o que foi e o que está. Entre o deslumbramente sempre aceso do ontem, e a singularíssima paleta, carnuda, pulposa, criativa, com se pinta o hoje. Não há assim tantas cidades como esta, onde se possa ver com os olhos e sentir na pele uma impressão de “conflito-coabitado” mas o conflito é natural. Vai escorrendo. Amável e afável. Uma convivência, melhor dizendo.

3. Um Bellini frente à baía (mas será o Bellini da Norma ou o das esculturas da Praça de S. Pedro? Não importa, a bebida é dos deuses). Esplanada semi-vazia. É um dia de semana, não há muita gente, uma ou outra “charrete” com turistas mais ocupados em fotografar do que olhar, outros deambulando de sandálias, marginal fora. O que há — e há sempre — é napolitanos, aqui vive-se na rua. Está calor apesar da brisa que vem do mar, animando as velas brancas de uma regata que se vê ao longe, sob um céu azulíssimo.

A sós com o Bellini, deu-me para me lembrar. Lembrar-me como o João Benard da Costa e o Alberto Vaz da Silva falavam daqui com paixão e do empolgamento em estado quimicamente puro com que celebraram a cidade quando cá estiveram. Continuando depois a contá-la, não se podia esquecer Nápoles.

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E poderá esquecer-se a pasmosa e imensa geometria da Catedral, única certamente, pois dela “saem” como por magia, duas outras amplíssimas igrejas, de um lado a de San Genaro; do outro, a de Santa Restituta –inicialmente uma basílica paleo-cristã do século VII, incorporada depois na Basílica do século XIII? Ou a estonteante Igreja de Jesus, ou a minúscula Capella Sansevero, semi-escondida em viela estreita? E onde, oh surpresa, numa penumbra silenciosa os olhos se extasiam não crendo no que olham, quando olham o “Cristo Velato”? Obra primíssima e quase única ao que se sabe de Giuseppe Sanmartino, que pouco mais esculpiu. Mas aqui teve o dom de um prodigioso trabalho com o mármore, conseguindo torná-lo transparente e quase manso, maleável até, e disso nos apercebemos emocionados, ao passar rente ao véu que cobre o corpo de Cristo e parece amparar o desamparo da sua expressão.

4. Mas nem só de santos e igrejas se fizeram os dias. Anisio Franco, conservador do Museu Nacional de Arte Antiga, o invejável Anisio — tanto é o seu saber e tanta a sua delicadeza – foi o guia do nosso pequeno grupo excursionista e tinha muito para nos mostrar. Museus, palácios, sítios, jardins, galerias. Impossível resumir, não se resume a grandeza, nem se abarca a História, a extraordinária história daqui, de uma penada. É preciso digeri-la e depois convocá-la.

Deixarei ao menos uma nota da imprescindibilidade de algumas moradas e desde logo o Museu Arqueológico Nacional – talvez o melhor do mundo pela especificidade do que lá está, mas isto, porque mo disseram: por um miserável contratempo não conheci o museu — coisas que acontecem — perdendo, entre mil outras raridades e maravilhas, o que mais teria gostado de ver, os frescos de Pompeia e as esculturas gregas e romanas saídas das escavações de Herculano e herdadas da talvez mais avassaladora colecção privada de arte que foi a coleção Farnese; imprescindíveis são também os tesouros, estonteantes na sua diversidade, do Palácio Real de Caserta, mas aí fui. Fica fora de portas, majestoso e mudo, frente a um bosque sem fim onde há um lago rodeado de ninfas de pedra, banhadas pela água deslizante de uma cascata que parece ter ali estado sempre; imprescindível o Museu Capodimonti – mais tesouros, mais riqueza, mais sinais de glória, perante os nossos olhos por vezes já embaciados pelo belo. E também obrigatório, a passagem pela luminosa Galeria Humberto I, olhando em cima o seu belíssimo tecto abobado; em baixo, o chão, desenhado com deslumbrantes minúsculos mosaicos.

Um distraído passando na rua talvez não acredite – ou nem sequer dê por ela — nesta coabitação entre um quase inclassificável e tão rico passado e os dolorosos sinais da sua própria decadência que lemos no ocre desbotado de alguns palácios, em mansões emudecidas há muito, nos jardins mortos, nos portões enferrujados que mais ninguém abriu. E um apressado porventura também não se deterá na amável convivência entre o fausto de ontem e o ( despachado) remedeio de hoje.

5. Voltemos à rua que ela merece bem uma “paseggiata”. Dizem-na suja — e está; sítio de malandros, ladrões e mafiosos — e também é. Mas que é isso ao pé do crepitar da sua (indisciplinadíssima) vida? No ar há uma permanente algazarra vinda de todo o lado, cachos de gente pisando passeios irregulares e por vezes esburacados; scooters e lambrettas demasiado velozes, um trânsito mais parado que circulado. E obras por toda a cidade empatando tudo e exaltando ânimos e nervos. Já estive em sítios “impossíveis” como S. Paulo onde os ricos circulam de helicóptero, ou Luanda — onde nem ricos nem pobres circulam; mas um trânsito assim, encenado pela maior indisciplina e a mais pasmosa indiferença face à ordem, jamais vi (nem em Roma).

Carros, autocarros, ambulâncias, motos, motoretas podem vir absolutamente de qualquer lado e não apenas do que lhes compete. Uma passadeira de peões, por exemplo, pode não querer dizer nada, a condição de peão é votada ao maior dos abandonos, intui-se por antecipação de onde vem o “inimigo” e depois tenta-se simplesmente sobreviver. As vielas, ou as ruas mais estreitas por definição acanhadas e de mau piso, têm misteriosamente quase sempre dois sentidos e estão sobrepovoadas: pelos que incessantemente as cruzam e, claro, pelos moradores que fazem da ruas o seu habitat, ali se entretendo, dia fora, noite dentro: um rapaz limpa afanosamente uma imagem religiosa a céu aberto, três velhas de negro e poucos dentes conversam num delicioso larguinho que desagua numa viela, sentadas em cadeiras de plástico, junto a um palacete em ruínas (onde talvez morem); uma jovem com um computador nos joelhos deita contas à vida, impassível face ao ruído e à desordem vigente; crianças gritam, adolescentes jogam a bola, bebés choram em carrinhos aos solavancos pelo piso caprichoso.

Debruando as vielas, há pequeno comércio, tão animado quanto procurado: lugares de hortaliça, minúsculas mercearias, modestas lojas de bijuteria de onde oh, milagre, podem sair improváveis tesouros, boutiques alternativas, lojas de roupa duvidosa, quinquilharia, e ah, a “pastieri napolitana”… quase uma obsessão: a pastieri reina. Seja nas grandes avenidas ou em diminutas e rudimentares bancas á beira das vielas já de si estranguladas pelo movimento, devoram-se o “Bábá”que aqui é rei ou “crostata di fragoline” que é rainha.

E claro sempre omnipresentes e multi-coloridas, as capas para os telemóveis. Vendidas por paquistaneses ou nepaleses, constituem um mistério. (Não cheguei a perceber se o diplomata e o pintor compraram alguma.)

Nápoles é um maravilhoso quadro vivo.

6. E porque os últimos serão os primeiros… Pinamonti, Paulo de sua graça. Após Lisboa — dirigindo o S. Carlos onde deixou saudades que não morrem — e depois de Madrid, lidera hoje o Teatro San Carlo, no centro da cidade, ao lado do Palácio Real. Na véspera já alguns de nós tínhamos trocado dois dedos de conversa com ele na sofisticada esplanada do “Gambrinus” (prefiro o nosso), mas foi na pele de cicerone que o reencontrámos plenamente quando, com indisfarçável orgulho, nos contou ser o San Carlo o teatro mais antigo da Europa ainda activo. Nascido da vontade de Carlos III de Bourbon, em 1737, devastado pelas chamas um século depois, e alvo das bombas da segunda guerra, renasceu sempre, nunca parando a sua actividade e vindo a influenciar o desenho e a concepção do nosso S. Carlos. Uma grande história dentro da história de Nápoles que Pinamonti nos conta, abrindo-nos as portas do teatro “fora de horas” para previligiada visita-guiada ao grupo excursionista. Um raro momento. Depois, envoltos pelos dourados do San Carlo e pelo veludo carmesim da plateia, ficámos para o concerto dessa tarde de domingo. Ouvindo um sobre-dotado pianista de 24 anos, Conrad Tao. Decorei-lhe o nome.

Ao anoitecer, despedimo-nos de Pinamonti. Um amigo amável, culto, ágil, sabedor. E talvez feliz, em Nápoles. Como nós, na cidade inexplicável. (mas que sabemos nós da felicidade de alguém, no caso de ela existir?)