Mesmo na época remota em que as televisões ainda não estavam convertidas à propaganda do Estado e aos flagelos no Sporting, nunca sequer espreitei uma cerimónia do Dez de Junho. Não o faria agora, quando qualquer criatura honrada foge dos canais indígenas com o pavor com que fugiria da gripe espanhola. Desgraçadamente, a gripe espanhola apanhou-me através da internet, que numa emboscada me atirou à cara as comemorações do dia de Portugal, de Camões, da Raça, das Comunidades, dos Pastéis de Nata e do entulho que calha. Apesar de carregar aflito em botões sortidos, não escapei à impressão de que, este ano, os nossos estadistas andaram a afirmar a grandeza pátria por Ponta Delgada e, supremo enxovalho, pela costa leste dos EUA. Há coisas piores, mas não muitas.

Uma delas é a amadora dramática que preside ao Bloco de Esquerda, a qual, em vez de ocupar o Dez de Junho com as humilhantes fanfarras da praxe, preferia consagrar a data à “enorme violência” da expansão soviética, perdão, da expansão islâmica, perdão, “da expansão portuguesa” (assim é que é) e à “história esclavagista, a responsabilidade no tráfico transatlântico de escravos”. Na visão erudita de Catarina, a Grande, o mundo era um lugar de harmonia e paz até ao momento em que os ocidentais decidiram afundá-lo em infâmia.

Há quem acredite em unicórnios. Catarina, a Colossal, acredita que a propensão para o Mal é um exclusivo do “homem branco”, cujo fardo não tem fim e cujas proezas tecnológicas facilitaram a subjugação e a exploração do “outro”. O “outro”, claro, é o bom, generoso, pacífico e meigo selvagem, que antes de 1500 passava os dias a acariciar passarinhos e raramente a enfiar em estacas as cabeças dos inimigos – ou a escravizá-los com gentileza. Não vale a pena lembrar que, na vergonhosa e aparentemente interminável cronologia da escravatura, o papel dos europeus é relativamente fugaz. Na perspectiva de Catarina, a Desmesurada, o selvagem não só é bom como é ingénuo. E tonto. E mais estúpido do que uma porta.

Trata-se de um evidente exagero. Ao pensar as relações humanas com a profundidade reflexiva de um calço, Catarina, a Imensa, é que, na melhor das hipóteses, é boa. E inocente. E tonta. E porta. E também profundamente racista, conforme notou Rui Ramos aqui no Observador. Para inúmeras Catarinas, as pessoas do Terceiro Mundo e arredores não são bem pessoas, complexas, contraditórias, às vezes lamentáveis, às vezes incompreensíveis. São estereótipos passivos e unidimensionais, prontos a acolher as projecções alucinadas de oportunistas que os utilizam em seu proveito. Ao negar a essencial humanidade de africanos ou ameríndios, a heróica gesta anti-racista de Catarina, a Vasta, recorre aos exactos preconceitos do racismo convencional e chega a conclusões pouco diferentes.

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Não quero ser demasiado severo. Provavelmente, Catarina, a Descomunal, não tem culpa. Com certeza julga os habitantes das demais civilizações pelos padrões disponíveis nos acampamentos do BE, onde simpáticos zombies sofrem portentosos enxovalhos e não dão um ai. No próximo acampamento, já em Julho, esses maravilhosos selvagens sairão de uma missa em prol da lapidação das adúlteras e da tortura dos gays (“Boicote a Israel e Celebração da Palestina”) para almoçar tofu no Espaço Queer ou hummus no Espaço Feminista. E, inocentes, não perceberão o absurdo. À tardinha, hão-de frequentar o workshop “Desconstrução da Masculinidade Tóxica” e, cândidos, não perceberão a idiotia. À noite, vão dançar na Festa Anti-Racista e, castos, não perceberão o insulto. E insulto maior é presumir que o “outro” é igual a eles.

Não me custa admitir que os discursos do Dez de Junho servissem para uma catarse nacional, limitada a calamidades actuais para a efeméride não ultrapassar os seis meses. Só uns três seriam necessários ao reconhecimento da enorme violência que o BE comete sobre a inteligência alheia.

Nota de rodapé

Parece que o “Diário de Notícias” vai acabar enquanto tal. Felizmente, segundo a directora-executiva daquilo (olá, Catarina), trata-se de uma boa notícia, dado que a conversão a semanário e ao “on line” manterá a óptima tendência “dos últimos anos”, em que, após “uma fase complexa”, o DN voltou a ser “um jornal sério, conservador, sem ofender as pessoas e com bastante atenção àquilo que são os pólos de decisão do país”. Repito: “um jornal sério, conservador, sem ofender as pessoas e com bastante atenção àquilo que são os pólos de decisão do país”. Não sei se lamente o descaramento, se exalte a sinceridade.