O historiador António Sampaio da Nóvoa escreveu no início do seu livro Evidentemente: Histórias da Educação (2005): «Uns anunciam o paraíso, outros o caos – a educação das novas gerações é sempre pior do que a nossa. Será?! […] Não há outro lugar da sociedade tão carregado de crenças e convicções. […] Quando se trata de educação, nenhum político tem dúvidas, nenhum comentador se engana, nenhum português hesita». Todos debitam opiniões e convicções, mas poucos sustentam os seus argumentos na experiência quotidiana vivida no interior das escolas e no soalho da sala de aula ou na articulação entre a prática pedagógica sistemática e a investigação persistente.
Devemos reconhecer que a educação em Portugal progrediu muito nas últimas décadas. A taxa de analfabetismo baixou para menos de 5% (era de 25,7% em 1970). Foi decretada e cumprida a escolaridade obrigatória até aos 18 anos. Consagrou-se a universalidade da educação pré-escolar para crianças que perfazem 5 anos de idade. Segundo os dados do PISA, ao longo dos anos 2000, Portugal galgou lugares, nos domínios das ciências, leitura e matemática, encontrando-se acima da média dos países da OCDE (a lógica economicista do PISA não o vocacionou para medir os conhecimentos de História e de outros domínios das humanidades!). Tornou-se, por isso, uma «estrela ascendente da educação internacional».
Porém, o país encontra-se ainda abaixo da Finlândia, Singapura, Japão, Canadá, Suíça, Suécia, Nova Zelândia e de pouco mais de uma dezena de outros países desenvolvidos. Por conseguinte, atrás de países que ostentam outros valores de crescimento económico, social e cultural. Que estão ausentes dos primeiros lugares nos rankings de corrupção e tráfico de influências. Que não têm uma cultura da «cunha», do nepotismo e do amiguismo. Países onde os encarregados de educação possuem habilitações académicas bem mais elevadas. Que tratam os seus professores com maior dignidade. Que cuidam equitativamente de todo o seu território nacional. Que suprimiram as «escolas-pardieiros» e desconhecem mega-agrupamentos providos com recursos tecnológicos primitivos.
Não obstante os bons resultados obtidos, decidiu-se que Portugal deve alcançar imediatamente os países acima citados, apesar dos anos-luz que nos separam deles. Para isso tem de suprimir as reprovações no ensino básico e no secundário. Em terra abençoada por milagres e epifanias, o governo português e os seus gurus do movimento da escola moderna tiraram da cartola um novo milagre de Nossa Senhora de Fátima: chama-se Autonomia e Flexibilidade Curricular. Pedagogias construtivistas, trabalhos cooperativos de projeto, ensino por núcleos de aprendizagens, onde os alunos decidem como e o que querem aprender, diferenciação pedagógica que atenda aos ritmos de aprendizagem de cada aluno, desvalorização dos conhecimentos científicos, redução extrema do peso dos testes escritos no processo avaliativo, etc.
Tudo isto propagado por um eduquês tão eloquente quanto cabalístico vertido em decretos-lei e declamado por teóricos obstinados ou praticantes extasiados de uma cartilha inspirada, dogmaticamente, em diversos autores. Por exemplo, no velho psicólogo marxista Vygotsky, no antigo pedagogo anarquista Freinet, na venerável médica pedagoga Montessori, no saudoso filósofo diletante Agostinho da Silva, ou no sociólogo Edgar Morin, com a sua complexa visão multidimensional, universal e cívica da educação.
Eis, pois, a última panaceia educativa, a «novel» receita miraculosa do sucesso que vai, enfim, transformar a vil escola de massas numa verdadeira escola inclusiva, libertadora e criadora de cidadãos resplandecentes. Como se os professores da «escola retrógrada», que produziu os resultados acima descritos, ignorassem estes e outros autores mais as suas filosofias e pedagogias e não desenvolvessem há anos uma miríade de atividades cooperativas, cívicas e inclusivas com os seus alunos, que complementam os conteúdos formais apreendidos em sala de aula: clube europeu, clubes de jornal, rádio, teatro, cinema, património, ambiente e saúde, visitas de estudo, intercâmbios com escolas estrangeiras, palestras, exposições, desporto escolar, evocações de efemérides, saraus, quizes temáticos, jogos de Matemática, concursos de leitura e escrita, feiras do livro, projetos de ciência viva, Parlamento dos Jovens, salas de estudo com apoio individualizado, e muitas coisas mais!
Todavia, subsistem «detalhes» que podem atrapalhar a consagração dos conceitos tecnocráticos pós-modernos de «sucesso» educativo e «excelência» académica vertidos na flexibilidade curricular. E quais são esses «detalhes»? Muitas das fórmulas da nova escola agora decretadas não são consensuais entre professores, pedagogos e «cientistas da educação». Várias das soluções promulgadas por esta nova reforma foram implementadas sem êxito no tempo da secretária de estado da educação Ana Benavente (1995-2001).
A promoção da educação para a cidadania contrasta com a redução da carga horária das disciplinas de História e Geografia. O Ministério da Educação persiste em negligenciar a formação científica dos professores nas diversas áreas disciplinares. E reduziu escandalosamente o orçamento atribuído às escolas, a ponto de os seus diretores não disporem de meios para realizarem obras básicas de manutenção dos seus edifícios, repararem os seus decrépitos recursos tecnológicos, acionarem o aquecimento central nos dias mais gélidos do inverno ou para reembolsarem, no tempo adequado, os seus professores classificadores, pelas deslocações às delegações regionais do JNI, a fim de receberem e devolverem as provas e exames nacionais.
Last, but not least: muitas das «novas» metodologias pedagógicas são impraticáveis nas escolas portuguesas, onde, entre outros aspetos atrás enumerados, no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no secundário existe pluridocência, provas de final de ciclo, exames nacionais, e a maioria dos professores tem mais de seis turmas, bem mais de 100 alunos, um ou dois tempos semanais de 50 minutos para lecionar programas densos e longos e sobrevivem atolados no lamaçal da «burrocracia».
Mas que interessa isto? Evidentemente, tudo isto são minudências para os políticos, os tecnocratas, os gurus, os missionários e os «controleiros» da proclamada «educação ética». Na escola da flexibilidade não há lugar para incrédulos — quem denuncia os riscos, as contradições e as inviabilidades desta cartilha é rotulado de professor ignorante, ocioso, senil e falastrão, aluno arrogante ou mãe e pai elitistas e reacionários. Os prosélitos da pedagogia «pura» já decidiram que a «escola retrógrada» provocou um «verdadeiro genocídio educacional» em Portugal e creem – e uma crença não se discute – que este novo espetáculo educativo vai proporcionar o nascimento de um Homem novo. Ora, todos sabemos como acabaram as ideologias que profetizaram a criação de um Homem novo…
Professor de História em Oliveira do Hospital, mestre em História Económica e Social Contemporânea e doutorado em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra. Investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Autor dos livros O sol bailou ao meio-dia. A criação de Fátima (2015), Tomás da Fonseca. Missionário do povo (2016), Fátima. A (des)construção do mito (2017).