Ricardo Araújo Pereira criou uma rábula hilariante a propósito da opinião do então jurista e comentador, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre a lei do aborto votada em referendo. Podemos transpor o espírito dessa rábula para a decisão tomada pelo atual governo sobre os chumbos no ensino básico (e, diria, também no ensino secundário): os chumbos são proibidos, mas podem acontecer, só que são proibidos.

De facto, o governo decidiu suprimir as reprovações através de um processo administrativo não assumido. Para justificar a sua posição atafulhou os agentes da educação e a opinião pública com vários argumentos, uns falaciosos, outros mal esclarecidos. Por exemplo, o Ministério da Educação (ME) é pródigo a reproduzir a tese de que chumbar é ineficaz e a sustentar o argumento de que custa muito dinheiro ao Estado. Mas não explica que um chumbo pode ser proveitoso, desde que seja acompanhado por um apoio verdadeiramente individualizado concedido ao aluno retido. Não publicita que, na última década, a escola pública portuguesa tem vindo a baixar significativamente as taxas de insucesso escolar. Quando invoca as estatísticas das reprovações inscritas na OCDE, esconde que os países que apresentam números mais reduzidos de insucesso escolar investiram, muito antes de Portugal, num sistema educativo inclusivo, dispõem de escolas bem mais modernas e apetrechadas, valorizam o papel dos professores, têm níveis de alfabetização e literacia consolidados, em muitos casos desde o início do século XX, e sociedades menos desiguais e, por conseguinte, mais equilibradas nos domínios económico, académico e cultural. O ME também não consegue demonstrar que as escolas que iniciaram esta última reforma mais cedo e que reproduzem dogmaticamente a retórica deste ME e as tendências da chamada «Escola Moderna» estão a obter melhores resultados nos exames nacionais dos ensinos básico e secundário.

Decerto que todos os agentes da educação desejam combater o insucesso escolar nacional. Mas sem ultrarromantismos, folclorismos, demagogismos e processos maquiavélicos. Afinal, a atual autonomia escolar impôs às escolas e às suas direções menos liberdade e mais dependência dos intricados decretos e portarias ordenados por este ME. A flexibilidade educativa pouco acrescentou às práticas pedagógicas usadas por muitos professores e escolas; pelo contrário serviu sobretudo para legitimar teorias e experiências pedagógicas esdrúxulas que são hoje contraditadas, inclusive nos países nórdicos, por diversos pedagogos contemporâneos, porquanto, em muitos casos, estão a obstruir o acesso ao conhecimento.

Os inextricáveis critérios de avaliação definidos por domínios afundaram os professores numa burocracia ainda mais esquizofrénica, impraticável e inaceitável, estão também a prejudicar as aprendizagens efetivas dos alunos, a desconcertar direções de agrupamentos, professores, alunos e encarregados de educação, a tolher a aferição dos comportamentos cívicos dos alunos e a disseminar ainda mais a indisciplina na escola. A atual avaliação de professores é um embuste que favorece sobretudo os mais oportunistas.

Se o Ministério da Educação pretende, de facto, modernizar o ensino e eliminar os chumbos terá que reformular currículos e reduzir programas de muitas disciplinas. Terá que investir mais nas escolas, sobretudo do interior do país ou das áreas urbanas mais problemáticas: requalificar os edifícios deploráveis dessas escolas, bem como investir em tecnologia e modernos recursos pedagógicos. Terá que contratar mais professores para rejuvenescer o corpo docente (um estudo recente da CNE diz-nos que 52,9% dos docentes têm mais de 50 anos), reduzir o número de alunos por turma, multiplicar tutorias e apoios pedagógicos. Terá que contratar mais psicólogos e assistentes sociais. Terá que repensar os cursos de formação e atualização científica e pedagógica dos seus professores. Terá que encontrar uma fórmula bem mais rigorosa e justa de avaliar os seus docentes.

Tudo isto custa ao Ministério tempo e dinheiro – duas exigências que o ME não está disposto a cumprir. Por isso, será sempre mais fácil «proibir» os chumbos, urdir passagens administrativas, ludibriar alunos, professores e pais, e arrastar as escolas para um ambiente de paz podre. Como escreveu Maquiavel no Príncipe: «Os homens são tão simples e tão obedientes às necessidades do momento, que quem engana encontra sempre quem se deixe enganar».

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