Os números são difíceis de contabilizar mas estamos de acordo quando falamos em milhões de pessoas em casa, num país que está agora a funcionar a meio gás. Ou talvez a um terço do gás. Há estabelecimentos encerrados, serviços interrompidos e empresas que continuam a operar com os seus funcionários em regime de teletrabalho.

E depois há os outros – os que estão em teletrabalho mas têm os filhos pequenos em casa. O que na verdade não é teletrabalho. É “algum” trabalho. É “trabalhar quando conseguem”. É “trabalhar nos intervalos” da atenção que os pequenos exigem. “Fica agora aí tu com os miúdos um bocado, que eu tenho de ir acabar aquele e-mail de cinco linhas que comecei a escrever de manhã”, é bem capaz de ser das frases mais ouvidas por estes tempos nas casas dos portugueses. Nas casas onde vivem dois adultos, claro. Nas famílias monoparentais, a coisa fica ainda mais lixada de resolver: não há outro adulto a quem pedir isso.

Quem tem adolescentes ou jovens em casa, menos mal. Mas os outros estão há algumas horas para conseguir acabar um e-mail enquanto andam às cabeçadas com o comando da box para encontrar aqueles desenhos animados do Disney Channel. E já deviam ter concluído aquele relatório há dois dias, mas estão sempre a ser interrompidos pelas criaturas que precisam de ajuda para concluir a torre da Lego.

Nesta casa há dois adultos, mas um deles só chega a casa depois de um dia de trabalho – os enfermeiros não fazem muito teletrabalho, são precisos no terreno. E, quando coloca a chave na porta, vem com saudades mas vem também com o cansaço acumulado de horas sobre o corpo e precisa de uns momentos para entrar na segunda fase da jornada laboral.

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Até isso acontecer, até a minha mulher chegar, vou conseguindo alguns intervalos de produção semi-intensiva enquanto as minhas filhas com 6 e 7 anos estão entretidas. Em momentos maus, podemos falar de uma bolsa de poucos minutos até surgir uma discussão ou uma delas se aborrecer. Em momentos bons isso pode durar uma hora, até duas. Se as deixar ver televisão por todo o tempo que lhes apetecer (já o quis fazer várias vezes, claro!), o jackpot pode ser ainda mais duradouro.

Quem tem filhos pequenos dirá que me queixo de barriga cheia (eu não me queixo, estou só a constatar). De facto, tentar ser produtivo enquanto entretemos ou tomamos conta de crianças com menos de 5 anos pode ser um verdadeiro desafio. Mas, por estes dias, percebo que a tarefa dos meus amigos com filhos mais velhos também não está muito facilitada: é que, no intervalo dos textos que têm de escrever, relatórios que têm de concluir, reuniões em vídeochamada que têm de fazer e tudo o resto que lhes ocupa o dia de (tele)trabalho, têm de abrir todos os e-mails que os professores têm estado a enviar, carregadinhos de TPC. “Eh, professores, tenham lá calma convosco” é também uma frase que tenho visto com alguma frequência pelas redes sociais.

Mas está tudo bem. Ninguém está aborrecido com os professores – que estão a fazer o trabalho deles, em condições complicadas, longe das salas de aula e do acompanhamento presencial de que muitos alunos precisam. Estes tempos exigem novas respostas e um esforço de todos. E as pessoas precisam de desabafar onde alguém as ouça. As redes sociais, claro.

Estamos todos juntos, todos cientes da grande dificuldade que enfrentamos e todos a dar o nosso melhor para que não falte o essencial – às empresas, aos clientes e aos filhos e família que precisam da nossa atenção. Há quem não possa trabalhar a partir de casa, de todo, por não haver condições para isso, mas os que podem estão por estes dias a esgatanhar-se para conseguir produzir alguma coisa em condições. E, para isso, precisam de regras.

Ora, acontece que quando há por aí uma pandemia à solta e estamos todos fechados em casa, “regras” são aquelas coisas que temos de ter capacidade e flexibilidade para furar, a bem da convivência comum e da nossa sanidade mental. Aqui por casa, no tempo que já levamos de isolamento voluntário, já ficámos de pijama vestido duas vezes, não tomámos banho todos os dias, já deixei as miúdas agarradas ao telemóvel umas horas valentes (tenho vergonha de revelar quantas), não fizemos exercício as vezes que combinámos, talvez tenhamos comido mais porcarias do que devíamos e só houve um dia em que cumprimos à risca a lista de objetivos traçada de manhã ao pequeno-almoço. Dizia assim: “Hoje não vamos fazer lista”.

Para já, ao sexto dia de confinamento (ontem foi o segundo dia de escola encerrada, mas trancámo-nos em casa antes disso), não me posso propriamente queixar da produtividade nem me posso queixar da falta de material de apoio sobre a melhor forma de organizar o tempo. Há boas ideias neste texto da Ana Cristina Marques, no Observador, nesta crónica do João Almeida Moreira, no Diário de Notícias, ou neste artigo da Renata Monteiro, no Público.

Nos próximos dias tentarei ser mais disciplinado com isto. Mas, se não conseguir, não vou trepar pelas paredes. Ainda temos muitos dias pela frente e muitas razões para hiperventilar. Além disso, cada vez que começo esta frase, as minhas filhas já a sabem concluir de cor: “Sim, pai, nós sabemos que nos estás a deixar fazer coisas agora porque estamos nesta altura, depois volta tudo ao normal”.

Acho que estamos no bom caminho.