Uma família farta da pandemia, dia 133

– Homem negro morre baleado por homem branco racista.
– Lá vem a conversa do racismo. Não! Um homem mata outro. A cor das peles não importa.
– Importa. O assassino disse “vai mas é para a senzala” à vítima.
– Isso não quer dizer que seja racista.
– Isto é um insulto racista.
– Mesmo que ele seja racista, isso não faz disto um crime racista. Pode ter sido uma coisa que lhe passou pela cabeça quando estava zangado.
– Uma coisa racista que lhe passou pela cabeça quando estava zangado com um negro.
– Isso não quer dizer que seja um crime motivado por racismo.
– Mas é motivo para falar de racismo. É motivo para vir a tal “conversa do racismo”. Lá porque a motivação não está provada, não significa que não exista racismo.
– Há racismo mas o crime não é racista.
– Qual é a diferença?
– Quer dizer que há racistas. Mas não quer dizer que o país é racista.

É muito cansativo tentar conversar com negacionistas do racismo sistémico em Portugal. No limite, as conversas acabam todas aí. “Uma andorinha não faz a Primavera. Uma maçã podre não estraga um pomar. Meia dúzia de racistas não tornam um país racista.” Acabam sempre a reduzir os exemplos de racismo a bolsas isoladas, pessoas mais velhas, gente com outra educação, malta com poucos princípios. Ou, claro, criminosos. Mas o país? O país como um todo? Uma sociedade? Uma mole enorme de gente que convive bem com o vizinho cabo-verdiano mas preferia que ele fosse branco, que “até tem amigos que são pretos” e que respeita a interculturalidade mas acha que os outros são muito diferentes…?  Não, essa malta não é racista. E, sobretudo, não tornam um país racista. É nisto que acreditam os negacionistas.

Há sempre um “sim, mas…” seguido de um chorrilho de ideias que defendem, desculpam, relativizam o racismo. Alguém que só tenha dito uma vez na vida “preto do caralho” não é um racista, claro. Alguém que de vez em quando, chateado no trânsito, se refira a outro condutor como “o cabrão do preto” que se quer enfiar na faixa de rodagem não é um racista, claro. E a senhora que, entrevistada pela CMTV em Moscavide, perto do local onde o ator Bruno Candé foi assassinado com quatro tiros, disse que “o senhor não se metia com ninguém, apesar de ser de cor…” também não é racista, claro.

Bruno Candé, negro, 39 anos, foi baleado no sábado, por volta das 13h00, na avenida de Moscavide, em Loures. O autor dos quatro tiros, disparados depois de empurrar o ator para o chão, é um homem branco de 80 anos, com quem terá tido um desentendimento uns dias antes.

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Segundo a família da vítima, o homem – que foi detido no local por populares que viram o crime e entregue depois à PSP (que entretanto recolheu também a arma) – terá proferido alguns insultos racistas a Bruno Candé no dia em que discutiram. O idoso terá dito várias vezes para o ator “voltar para a sua terra e ameaçado que um dia o iria matar”, revela o Jornal de Notícias.

Eu sou jornalista, conheço bem a importância do “sim, mas…” Não aceitar a primeira versão de uma episódio relatado, investigar para tentar saber mais. Perguntar aqui, acolá, a um lado e a outro, ouvir várias fontes, cruzar dados, confrontar versões. Apresentar aos leitores, ouvintes ou telespectadores uma visão dos factos baseada nos dados recolhidos. E, em caso de dúvida, impossibilidade de prova ou para corroborar a informação, atribuir citações: “Segundo a pessoa X”, “disse a fonte Y”, “de acordo com o indivíduo Z”.

Sei bem que o caso, que está agora a ser investigado pela Polícia Judiciária, poderá ter outros contornos e ainda poderá vir daí um comunicado ou uma conferência de imprensa onde se descarta a motivação racial. E que o advogado do idoso de 80 anos que deixa três crianças de 2, 4 e 6 anos órfãs de pai poderá vir a terreiro defender que aquilo foram só coisas ditas da boca para fora, umas alarvidades que o cliente disse porque estava fora de si.

Em bom rigor, talvez nunca saibamos ao certo se isto foi um crime de ódio racial, como defende a Associação SOS Racismo, que fala em premeditação. Mas sabemos que foi um crime cometido por um racista.

Podemos sempre relativizar a coisa e substituir “ser racista” por “usar comentários ou ter comportamentos racistas”. Claro que podemos. Tal como os negacionistas fazem. Mas aí continuaremos a persistir no mesmo erro: continuaremos a não querer ver uma coisa que nos entra pelos olhos dentro e que continua a minar a sociedade. “Há certas correntes mais extremadas que estão em fase de negação quanto ao problema do racismo, mas o certo é que ele existe, e existe de forma quotidiana”, disse hoje o diretor da Amnistia Internacional, Pedro Neto, em declarações à TSF.

Os negacionistas, entretanto, já começaram a despejar as opiniões no esgoto a céu aberto que são as caixas de comentários de órgãos de comunicação social na internet. Já encontraram defeitos em Bruno Candé (que os teria, certamente), já disseram que andava a provocar o idoso porque este lhe teria pisado a cadela que o acompanhava sempre. E já disseram, naturalmente, que Bruno contava com RSI e, por isso, “era um parasita”. E, claro, entre muita verborreia, começa o coro do Whataboutism, a expressão inglesa que traduz esse sentimento de assobiar para o lado que começa por “Então mas e…”

“Então mas e aquele pai e filho mortos por um cigano….?” “Então e aquele estudante cabo-verdiano morto em Bragança que afinal não foi vítima de racismo, concluíram as autoridades?” “Então e o estudante morto no Campo Grande…?” “Então e se ele fosse branco, querem lá ver que não levava também uns balázios do velho?” Então isto, então aquilo, então tudo e mais alguma coisa que sirva para tapar o racismo com um filtro de passividade. O filtro usado por quem não vê, não quer ver, não quer tratar, não quer educar. Querem apenas deixar andar. Como sempre se fez.

Ainda não li que se calhar Bruno Candé “até estava a pedi-las”. Mas já li, várias vezes, que é preciso saber o que aconteceu e o que terá ele dito “para irritar o senhor daquela maneira”. E também já li o maior negacionista e oportunista de todos, André Ventura, líder do Chega, na natural reação de quem precisa dos minimizar o racismo mas precisa dos votos dos racistas: “(…) Acabem lá com essa ladainha habitual do racismo. (…) Não somos um país racista. Nada neste homicídio aponta para crime de ódio racial.”

Paula Lebre, a mãe da jovem Beatriz assassinada em maio por um ex-namorado obcecado por ela, descreveu bem essa sensação de culpa que se procura sempre numa vítima: “Neste país não racista e não machista tem de se encontrar qualquer falha, qualquer imperfeição, qualquer pecado no comportamento da vítima que tenha originado o seu próprio homicídio por um agressor. Neste Portugal não racista e não machista, demasiadas vezes há pena de morte das vítimas já assassinadas. Foi o que aconteceu com a minha filha Beatriz Lebre nas primeiras notícias, antes de a conhecerem.”

Quando o corpo de Beatriz foi encontrado e Rúben Couto confessou que a espancara até à morte, ficámos todos a saber, pela comunicação social, que ele até era uma joia de moço e que nada faria prever aquilo.

Pelo menos neste caso – e ao contrário do que muitas vezes acontece em situações de violência contra mulheres – não se estão ainda a publicar perfis de quem matou. Lá chegaremos. Por causa dessa caracterização de assassinos que nós, jornalistas, fazemos por vezes para humanizar uma besta, é possível que amanhã ou depois surjam por aí relatos apaixonados sobre o enfermeiro de 80 anos que disparou sobre Bruno Candé. Se calhar é boa pessoa. Se calhar teve só um momento mau. Se calhar é um doente mental. Se calhar nunca ninguém suspeitou que ele pudesse fazer isto. Se calhar tem mulher e filhos – que por estes dias estão destroçados com o que o pai fez e com a ideia de poder passar os últimos dias da vida numa prisão. Se calhar são pessoas às direitas, com os princípios no sítio certo. Se calhar até são militantes anti-racismo. Se calhar até já endereçaram as condolências à família de Bruno Candé e estão a sofrer com eles (se não o fizeram, fica a dica).

Por enquanto ainda não sabemos nada disso. Por enquanto sabemos apenas que Candé era um homem bom e generoso, entregue à sua profissão. “Em qualquer circunstância, em qualquer contexto, era uma pessoa impossível de não ser amada”, disse a encenadora e atriz Mónica Calle ao Público. “Era alguém com uma alegria e generosidade como raramente conheci na vida. Tinha uma força e inteligência emocional incríveis.”

Por enquanto só sabemos isto. A história de um homem bom que um dia morreu com quatro balas disparadas por um racista. Num país que continua a negar o racismo.

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