Uma família farta da pandemia, dia 140

Chegou agosto e trouxe as férias. As tão ambicionadas e mui desejadas férias que estavam no horizonte de esperança de tanta gente. Chegou o agosto por que tanto ansiávamos para marcar a fronteira entre os meses que tanto queremos esquecer e os meses que tanto tememos e queremos adiar.

Nunca precisámos tanto de um agosto como precisamos deste. Nunca tivemos tanta necessidade de cortar com o que ficou para trás como temos agora. Nunca foi tão importante marcar um antes que não queremos que se repita e um depois que não sabemos o que trará.

E mesmo que as famílias não se juntem como noutros anos ou as máscaras lembrem que os beijos se devem evitar, mesmo que os lugares à mesa sejam mais afastados (ou tenhamos de colocar mais mesas para garantir a distância), mesmo que os festivais de verão sejam agora miniconcertos em coretos e pequenos palcos, mesmo que os areais não estejam cheios e mesmo que os hotéis não esgotem a ocupação em época alta, mesmo que as piscinas públicas sejam local a evitar, mesmo que nos restaurantes de sempre haja menos cadeiras e por isso demoramos mais para conseguir almoçar na esplanada (ou nem sequer tenhamos restaurante) e mesmo que a gelataria de todos os verões tenha agora menos sabores porque “não compensa encomendar o mesmo dos outros anos”, mesmo que tenhamos todas estas condicionantes, agosto será sempre agosto e deste agosto estávamos a precisar ainda mais.

Até aqueles que não gostam de tirar férias neste mês – porque é uma excelente altura para trabalhar e um péssimo mês para estar nas praias e nos restaurantes onde está toda a gente – e foram obrigados a marcar dias para este período porque a empresa assim mandou, agarram-se à vontade férrea de que estas semanas garantam a energia necessária de que vão precisar para o que aí vem a partir de 1 de setembro.

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Para trás fica o confinamento, as aulas interrompidas e depois mantidas à distância, as escolas fechadas e depois reabertas para alívio dos pais, o teletrabalho em condições complicadas na mesa da sala transformada em mesa de escritório e com horas roubadas ao sono para compensar tudo o que ficou atrasado, os professores à beira de um ataque de nervos, os miúdos fechados dentro de quatro paredes, a tensão acumulada em família, o receio pela saúde dos nossos pais, os números de infetados a crescer, as mortes, a desinformação, as contradições das máscaras que devam uma “falsa sensação de segurança” e agora são uma condição obrigatória de convívio, o receio de colapso do SNS, os aplausos aos profissionais de saúde, o primeiro contacto com uma realidade que julgávamos temporária e agora sabemos que é permanente. Para trás fica o medo. E para a frente, depois deste intervalo, temos… mais medo. O medo de que tudo se repita.

Mas agora precisamos deste intervalo. Desta fronteira.

Precisamos de uma sensação de normalidade que devolva alguma segurança dentro da anormalidade que foram os últimos meses. Precisamos que esse tal “novo normal” traga um pouco do “velho normal”.

Precisamos dos churrascos e dos donos da grelha, que só estão bem quando estão nas brasas, que acreditam que ninguém faz grelhados melhor do que eles e que ficam chateados se não está toda a gente sentada para começar logo a atacar as sardinhas ou a entremeada que vão levando para a mesa.

Precisamos das romarias e festas de aldeia, dos cantores pimba a que chamam populares, dos duos românticos, dos decibéis debitados das colunas do sistema de som que a junta de freguesia ou a comissão de festas dizem há anos que vão substituir.

Precisamos de olhar pela janela e ver os miúdos a jogar à bola, a saltar à corda, a correr ou a dar mergulhos na piscina da casa alugada ou da casa de amigos. E das fotografias desses momentos para nos lembrar que estamos a viver isto e que não queremos saber quando vai acabar.

Precisamos das bolas de Berlim na praia, dos pés cheios de areia e da sensação de sermos os últimos a deixar o areal, quando já começa a ficar desconfortável e amaldiçoamos a falta de lembrança para levar um casaco.

Precisamos das amêijoas à Bulhão Pato, das sardinhas assadas, das saladas de polvo, do prato de caracóis e das imperiais, finos, canecas, minis ou médias para regar jantaradas que agora têm hora marcada para acabar mas tentamos não lembrar.

Precisamos de acreditar que a única preocupação é saber se temos gelo suficiente no congelador, se levámos o protetor solar das crianças e o repelente de insectos e a pomada para as picadas, se este ano não deixámos o chapéu-de-sol em casa ou se há óculos de natação para todos os filhos.

Muitos já fizeram viagens ontem, outros seguiram hoje e há quem só arranque amanhã. Começou agosto e arrancou oficialmente aquele mês que, mais do que nunca na vida, vamos querer aldrabar no calendário para não entrar em setembro. Esse setembro que vai significar o regresso às aulas e que pode significar também o regresso dos miúdos para casa três semanas depois. Esse setembro que antecede o outubro da gripe sazonal, que se vai misturar com a Covid e que pode confinar novamente a nossa vida. Esse setembro no qual não queremos pensar agora. Agora é agosto e a nossa vida precisa deste mês.

Que o agosto nos traga a serenidade de que tanto precisamos antes do setembro de todas as dúvidas.

Esta pode ser a banda sonora para estes dias.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

 

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro

Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio

Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril

Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?

Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso

Dia 62. As pequenas vitórias que nos passam ao lado

Dia 69. Como combater a fadiga do Zoom e dos filhos? Com vinho

Dia 76. A minha filha não regressa à escola na segunda-feira

Dia 83. Faltam três semanas. O que vão fazer aos filhos nas férias escolares?

Dia 90. Um penso rápido cor de pele? Da pele de quem?

Dia 112. Voltar à Beira no Verão. E manter a sanidade mental

Dia 119. Como se desliga a ansiedade nas férias Covid?

Dia 125. E o adolescente aí em casa, como está a lidar com isto?

Dia 133. “Pai, aquele senhor em Moscavide morreu porque era negro?”