Para a minha mãe me levar a Espanha, no início dos anos 70, era preciso ir ao notário reconhecer a assinatura do meu pai na autorização que lhe levaria para o longínquo estrangeiro a primogénita, na companhia sempre suspeita, pasme-se, da própria mulher que, esclareçamos, não tinha registo de actividades criminosas nem se pensava que fosse capaz de raptar a própria filha. Isto, só para não referir a condição de submissão que exigia que a própria mulher fosse autorizada pelo marido a colocar o pezinho noutro território que não o do casamento. Logo de véspera todo o ritual costumeiro de uma saída, mas mais tenso por prever o tempo gasto na máquina burocrática. Folha de vinte e cinco linhas, selos fiscais, trocos, bilhete de identidade, passaporte.
A que horas é o barco?
A Espanha que então conheci, e conheci-a quando conheci Portugal, era um país pobre, mais pobre do que Portugal, um escudo valia duas pesetas. Eu adorava Espanha ainda que os papéis sujos levantassem voo dos passeios encardidos e o lixo se amontoasse nas esquinas.
Só por estar na fila da alfândega, ainda agarrada a Vila Real de Santo António, já me sentia inteiramente sevilhana, filha de gerações de andaluzes. Adorava tudo. O calor tórrido, os albaricoques doces do sumo quente, acabados de colher, e as palmeiras magríssimas de cabeças lá no alto, rodeadas de um claro azul ferino. As primas e as sevilhanas rocieras. Os leques desfraldados como bandeiras lentas. A devoção coberta de mantilhas negras e os terços desfiados antes da missa.
Ao fim de uma longa espera, entregava-se os documentos, passaporte, folhas de vinte cinco linhas e tudo mais que a lei exigisse – e a lei exigia. Depois as perguntas, os olhares longos das fotografias dos documentos para as caras dos portadores dos ditos, de novo para as fotografias. Partia-se para o ponto alto: abrir malas e carteiras porque não se podia levar o dinheiro que se queria, só o que o país, mais experiente nestas coisas das relações internacionais, autorizava, e avisado que era, sempre de olhos postos no futuro, autorizava pouco. Em casos de suspeição removiam-se os possíveis prevaricadores para uma sala onde seriam apalpados com competência, porém com atenção ao género, cortesia de um Estado binário: uma senhora seria revistada por outra e a um homem a honra seria feita por outro. Se nada tivesse sido esquecido nem infringido passámos a fronteira.
Este passar a fronteira tinha qualquer coisa de meta que se atingia, era mais do que Ayamonte do outro lado, era a decadência franquista que se experimentava quando o carro avançava para dentro do ferry onde cheirava a combustível e óleo.
Agora, nós os portugueses, libertos de burocracias ditatoriais e da própria ditadura há 49 anos, subsidiados há 37 anos pela UE, felizmente plenos na nossa igualdade de direitos, rasgadas que estão todas as folhas azuis de 25 linhas, podemos meter-nos nos nossos próprios carros, ir a queimar gasolina até Madrid e experimentar a alta velocidade, primeiro até Lyon, depois direitinhos a Paris, por 29 euros. A Europa começa assim que passamos a nossa própria fronteira. Olé!